Encostado ao muro alto
que sombreia a fila de jazigos, está o obelisco.
Três metros de altura em
granito, pirâmide quadrangular no topo,
inscrição na face
voltada para a frente, para um quadrado de relva,
“Aqueles que por obras
valerosas se vão da lei da morte libertando”,
Homenagem do povo ao
soldado desconhecido. 9 de Agosto de 1967.
Quando o tio Amílcar
morreu, eu tinha onze anos. Ainda não existia obelisco.
No funeral, apareceram sete homens com ar solene. Marchavam como soldados.
Camisas brancas, calças
e sapatos pretos, braçadeira preta na manga esquerda
nas cabeças, bivaques
cinzentos com o número quatro em metal amarelo
e duas espingardas
cruzadas a brilharem naquela tórrida tarde de Julho.
Disse a minha mãe,
amigos que tinham estado com o tio na guerra, em França.
Nunca me falara neles
mas reconheci um, por o ter visto lá em casa algumas vezes.
Nessa tarde, o meu pai contou-me
o que o tio Amílcar nunca me disse.
A noite estava serena
quando o cabo Amílcar saíu em missão de reconhecimento
com outro camarada, até uma aldeia próxima, em poder dos alemães,
a uns
quatro quilómetros das suas linhas.
Rastejaram pela lama, de
buraco em buraco de obus
ultrapassaram o mais
silenciosamente que puderam o arame farpado,
evitaram as minas e já estavam perto da estrada, quando tiveram de abrigar-se numa vala.
Uma chuva de ‘very
light’ vinda da trincheira
inimiga, iluminou a noite.
Naquela vala estava
uma jovem com uma criança de colo.
O medo não a deixava mostrar-se e evitava que o menino chorasse, dando-lhe o peito.
Quando viu os dois soldaos caíram quase sobre ela teve um sobressalto
ao mesmo tempo que tudo ficava claro à sua volta,
o grito que deu, o silêncio da
noite ampliou.
Soldados
alemães da trincheira mais próxima, a menos de cem metros,
começaram a metralhar o local atingindo a jovem
que na aflição se levantara,
pondo-se a descoberto. Duas ou três granadas, de
gás mostarda, caíram por perto.
Começaram a correr na
vala, O tio Amílcar com o bébé debaixo do braço
enquanto se serviam das máscaras antigás para proteger a criança e a jovem
ao mesmo tempo que respiravam alternadamente pela do companheiro.
As duas horas mais longas da
vida quando conseguiram regressar às linhas
Tinham salvo criança e jovem com determinação e coragem e foram ambos condecorados.
Mas o gás mostarda secara-lhe os pulmões, descompassara-lhe o coração.
Poucos meses depois, regressava num navio de guerra com outros feridos.
A tia Eulália morreu de
enfarte. Oito anos depois.
A casa estava fechada desde então e assim ficou até hoje.
Os primos do meu pai, depositaram-na num lar até ao dia da sua morte
Nunca se entenderam quanto à herança e menos ainda quanto às obras.
Meio
destelhada, janelas esventradas, vidros estilhaçados
azulejos verdes e brancos já não formam o xadrez original
crostas
de feridas abertas que sangram no negrume da fachada.
Escadaria de degraus
gastos, anjos de pedra sem cabeça um e sem asas outro,
continuam
teimosamente ajoelhados no bordo do pequeno lago seco
que as silvas invadiram depois
de devorarem os canteiros
treparem os muretes do
jardim e cobrirem a entrada da garagem,
Quando aqui vinha, com
os meus pais visitar tios e primos
os anjos do lago estavam perfeitos, segurando umas tochas com flores,
e os tabuleiros de
margaridas, miosótis, lilases, sálvias e troviscos
eram sinfonia colorida de
perfumes a que a tia Eulália dedicava alma e coração.
O tio Amílcar assim que me via, alongava o
braço, agitava a mão, a voz fraca,
‘anda cá, meu menino’
e eu passava horas
sentado ao lado dele, no cadeirão do quarto,
a ouvir-lhe aventuras que
não eram as dele
mas que ele me contava como se fossem..
Se lhe pedia que me
contasse a história da guerra dele,
franzia-me o sobrolho
‘ora, isso não tem graça
nenhuma…’
e lá vinha um ataque de
tosse.
No portão fechado a cadeado, a placa ‘VENDE-SE, parece eternizar-se.
O nó na garganta. O coração a subir-me no peito. Os olhos a ficarem húmidos.
'anda cá meu menino'
É então que parece que oiço não a voz, mas a tosse do tio Amilcar
que tinha sido cabo no
corpo expedicionário combatera na Flandres,
na primeira guerra mundial e foi herói com medalha
e tudo,
não por ter matado gente mas por ter salvo uma criança e a mãe.
Regressou com aquela
tosse convulsa, a espumar pela boca
aflições lívidas que
o deixavam prostrado,
os dedos a repuxarem as
golas do casaco de pijama
e aquela cara de
enforcado que a doença ia deixando sem ar.
Num impulso, meto-me de
novo no carro.
Nunca se pode revisitar a própria infância.