23 de dezembro de 2015

QUANDO O MENINO JESUS FAZIA DE PAI NATAL




O Leitão ia para a varanda no primeiro andar da escola, com umas orelhas de burro. Uma tabuada desafinada e contas com resultados ainda piores. Erros nos ditados. Cópias mal copiadas.
A dona Joaquina, a professora, fartava-se de escrever no bordo do caderno diário do Leitão.
Ao fim do dia, uma senhora velhota de aspecto humilde, aparecia à porta da escola. A avó do Leitão.
Levavam-na até ao gabinete da directora e depois entrava a dona Joaquina. Estavam as duas que tempos, assim com a dona Joaquina a gesticular e a avó do Leitão a ouvir. Um lencinho limpava uma lágrima traiçoeira que se evadia dos olhos cansados e tristes da avó. Depois ia-se embora com o Leitão, a caminhar ao lado, de pasta às costas e boné de pala virada.

Novembro ainda não chegara ao fim e já as montras das lojas se enfeitavam de Natal. Para o Natal.
Bolas coloridas e estrelas de prata, algodão em pequenas nuvens a dar o toque de neve, caixas embrulhadas em papel brilhante e fitas largas com laços dourados a fingirem presentes.
Na rua, em cima dos candeeiros, anjinhos a tocar harpa, de azul suave, com asas brancas.
Ao fundo, na enorme rotunda do relógio na relva e canteiros de cíclames e nemésias, o Presépio!
Ah! O Presépio! Vinham uns homens fardados de cinzento numa camioneta muito alta com as figuras
Da janela da sala de aula via-se perfeitamente José, Maria e o Menino Jesus. Os três reis magos (‘Mágicos’, como teimava o Leitão) e os camelos. Burro e vaca, indispensáveis, perto da manjedoura a olharem o menino. Uma enorme estrela com um rasto luminoso, acendia-se mal se apagava o dia.
“Tens de pedir ao menino Jesus o que queres no Natal...”, dizia-me a mãe e acrescentava:
“…para teres tempo de escrever…”  foi assim que o menino Jesus ganhou um incondicional fã.
Os meus desejos apareciam milagrosamente na chaminé da cozinha. O menino Jesus não falhava.
E eu dormia sempre num sobressalto, na véspera, sempre à espera do barulho revelador.
Primeiro um xilofone de madeira e folha que tocava sozinho o ‘Jingle Bells’ e a ‘Noite Feliz’. era só andar para a direita ou para a esquerda, a pequena manivela lateral. Durou o tempo, da minha curiosidade, para perceber porque a manivela fazia tocar o xilofone.
Depois, chegou o carro patrulha a pilhas, com luzes azuis e o barulho da sirene. Nunca caía da mesa! Parecia mesmo que alguém estava a conduzir e evitava que se despenhasse. Até que lhe retirei uma pequena patilha no meio das rodas da frente. Despenhou-se!
O ano da glória foi o do cavalo castanho de papelão com crinas e rabo de estopa amarela. Um estrado com pequenas rodas por baixo das patas para poder deslizar e chamava-se ‘Valente’. Levei-o para casa da minha avó e foi no quintal que morreu numa noite de chuva intensa. Uma pneumonia que o reduziu a uma massa disforme e cinzenta. Chorei tanto a morte do Valente!

Quando disse ao Leitão que era verdade que o Menino Jesus me ia dar um par de patins, ele riu-se agarrado à barriga e depois pôs o dedo indicador na minha testa e quase me gritou: "És mesmo parvo, ó parvo! Então não sabes que isso não pode ser? O Menino Jesus não existe!" Eu fiquei tão parvo com aquilo que quase me fui a ele... ao jantar contei o que o palerma me tinha dito e perguntei ao meu pai e à minha mãe:
"O menino Jesus existe, não existe?"
Demoraram tanto tempo a responder que o menino Jesus se deve ter feito homem, entretanto...

1 de dezembro de 2015

MAIS PERTO DO CORAÇÃO




Então, nunca mais chegamos!?
Eu aos oito anos, numa dessas ocasiões que podem mudar uma vida.
(Por mares nunca dantes navegados…)
A bordo do Austin dez cavalos, preto a brilhar como novo.
No banco traseiro, eu. Entre a minha mãe e a minha avó Judite.
O meu tio Reinaldo ao volante. O meu pai ao lado.
Oito horas de viagem, pelo menos. Pelo mais, nem sei quantas seriam.
O mapa das estradas para marcar os locais de passagem.
O cavaleiro andante para ir lendo e passando o tempo.
Um bloco e lápis pelas notas de viagem.
Caldas da Rainha. O café da manhã. As senhoras vão ao mercado.
Voltam meia hora depois com uma pequena cesta de fruta.
Pacotes de cavacas. Um cartucho com suspiros.
Alcobaça. Almoço. Frango na púcara no Corações Unidos.
No Mosteiro, a cozinha enorme onde Alcoa e Baça dão nome à vila.
Coimbra. A pequena paragem no café, em frente à estação.
Lavamos as mãos e bebemos um café, alvitra o meu tio.
Acabámos todos nos lavabos, antes de lavarmos as mãos e do café.
O Portugal dos Pequeninos fica para a próxima.
Afinal parece que já se faz tarde.

Então nunca mais chegamos!?
Eu a tentar ver os bonecos do ‘Cavaleiro Andante’.
Em Albergaria, o meu tio avisa. São curvas e mais curvas.
Alguém enjoa? Enjoado? Vou mesmo sem curvas.
O rio serpenteia entre margens. A estrada imita as voltas do rio.
Vouga! Vai até Aveiro. Mau, penso eu. Agora Aveiro?
Então e Sever? Já que temos o Vouga aqui à mão.
Ouve-se um apito fumegante e depois outro.
É um eco suspenso no meio do rio. Lá em cima.
A imponente ponte de pedra e o pequeno comboio.
Num equilíbrio de arame como no circo.
De um lado e do outro da serpente líquida é verde.
Uma casa parece perdida na mancha dos pinheiros.
Agora largamos a estrada junto ao rio num cotovelo.
Começamos a subir. Adeus rio!

Já estamos quase, não estamos? Palpito eu do banco de trás.
Estamos, respondem-me em coro com ar enfastiado.
Uma fileira de casas baixas à beira da estrada.
Mais uns quantos telhados dispersos. Não há pessoas?
Na estrada um homem com um boi preso a uma corda.
Nunca vira ninguém a passear um boi pela trela.
No carro, todos se riem com gosto. Os adultos acham graça a cada coisa.
Quando o meu tio diz de súbito. Chegámos!
Dou um salto que me faz bater com a cabeça no teto do carro.
A última ladeira. E uma entrada para um largo com palmeira.
O prédio é antigo. Três andares e águas furtadas. Pensão Palácio.
É aqui? Já chegámos?! De novo, o coro, num suspiro. Chegámos.
Ó Reinaldo, mas isto é no fim do mundo!
Deixa escapar a minha avó, ao meu lado no banco de trás.
Finalmente, parece que tenho uma aliada, penso eu.
Eu acho que é longe de Lisboa. Longe do longe. Longe de tudo.
Foi a primeira vez!
A partir dessa vez, Sever do Vouga, a ficar sempre mais perto.
Até do meu coração.

REABILITAÇÃO

Vai sofrer
vai doer
vai moer
Mas vai dar vida.
Por tudo a mexer.
Persistência
na cadência
com paciência
com determinação!
Vai doer
vai moer
Mas vai dar vida!
Por tudo a mexer.
Perna e braço,
beijo e abraço
um bater do coração!