24 de setembro de 2016

ACABOU, JOÃO. VOU-ME EMBORA...

Ouviu a porta bater mas permaneceu imóvel, sentado à mesa, silêncio de olhar parado na parede do fundo com a mão esquerda a segurar o pedaço de manuscrito da despedida e a outra arrepanhar a toalha amarela com barras azuis, na esperança de inesperados passos no corredor e de a ver assomar, à porta da sala, transformada num vulto arrependido, arrastando a mala de viagem para parte nenhuma. Nada. Acabaria com raízes naquele lugar, corpo de tronco seco, pés de raízes, num inverno permanente.
(Acabou, João. Vou-me embora...)
Tinha a mesa posta: um prato, um copo e um talher. Ela já não tencionava jantar, nessa noite. Durante todo o tempo anterior, quase vinte anos, encontravam-se ao jantar ou nem por isso. Dormiam juntos umas cinco horas por noite quando ela se deitava depois de ter adormecido no sofá da sala a meio da última telenovela. Desistira de esperar por ele que chegava sempre demasiado tarde, uma última rodada de meio whisky novo, no café onde afogava uma vida inventada na solidão da neblina do álcool. Vontade de não ter vontade
(Acabou, João. Vou-me embora...)
A voz dela, calma e suave. Ali, de pé, na ombreira da porta, com o vestido azul curto, de alças que ele lhe oferecera. Há quantos anos? Quando chegou mais cedo, apanhou-a de mala de viagem feita. Para uma viagem sem volta. Ouviu-a como se estivesse debaixo de água, na turbulência engasgada de frases com censuras, com desgostos, com traições, com queixas. Um amor que se apagou como se apaga uma ilusão. Como ilusão aquele filho que ela teve, no ventre, durante três meses e que perdeu quando caiu pelas escadas no dia em que fazia trinta anos. Um lanço inteiro de degraus até chegar ao patamar com uma clavícula esmagada e uma poça de sangue a manchar-lhe as coxas, o vestido e o chão à sua volta. Ninguém soube que ele a tinha empurrado, num acesso de ciúmes. Num acesso de bebida a mais. Uma violência com nome de crime como noutras noites que lhe bateu deixando-a com nódoas negras no corpo e na alma. Depois, à medida que ela calava a mágoa num choro solitário ele parecia redobrar a violência. Ate que, encontrou a coragem nas dores de outras mulheres como ela que como ela tinham ganho a coragem de se libertar. Agora que lhe enterrava na carne os espinhos da vida que ele lhe dera, até sentia um estranho prazer. Tinham sido anos demais. Anos a mais.
(Acabou, João. Vou-me embora...)
Terminou sem uma lágrima. Sem comoção. Ainda pareceu esperar um pouco, tentando adivinhar uma reacção. Mas ele permaneceu debaixo de água onde os ecos das palavras lhe chegavam distorcidos. Ela teve um sorriso amargo. Fez aquele jeito com o ombro para evitar o escorregar da alça do vestido. Pegou na mala e na carteira vermelha que ele achava enorme e horrível e deu meia volta. Ele ficou parado no tempo, a arrepanhar as barras azuis da toalha amarela e o papel escrito com frases engasgadas de censuras, desgostos, traições, queixas, de um amor que se apaga como se apaga uma ilusão e que ela tinha embrulhado num envelope e posto em cima do prato, para o caso de não se encontrarem. Ficou a ouvir os passos dela a afastarem-se pelo corredor até que a porta ao fundo do corredor se abriu e segundos depois voltou a fechar-se com um estranho silêncio.





12 de setembro de 2016

PORQUE FUI BAPTIZADO OITO DIAS ANTES DE ME CASAR COM A MOÇA MAIS BONITA DA TERRA...

POUCO PASSAVA DAS ONZE HORAS, o enorme portão verde no extremo do muro alto que rodeava a ala norte do Convento abriu-se e em formatura, os cadetes começaram a aparecer numa onda de fardas verdes e boinas castanhas e botas reluzentes da graxa.(em frente à porta do posto do oficial de dia, ouviam-se as vozes dos comandos de pelotão, OLHÁÁÁÁÁÁR DIREITÁÁÁÁÁ!!!! e o ruído de trinta e tal botas baterem no chão, marcarem o momento da continência à bandeira, menos vezes parecendo uma só, na maioria dos casos, talvez semelhante a trovoada ) ansiando pelo momento em que a mesma voz de comando proferiria a última ordem da manhã: DESTROOOOOOOÇAR!!!)
Meia corrida ou meia pressa, de fardas, de malas e de sacos em direcção aos carros que no espaço fronteiro com os familiares ou simplesmente à espera que os donos chegassem e em demanda do destino de cada um, fossem desaparecendo na estrada pelas curvas que ligavam à Malveira. Viagem longa, nesse sábado, quase trezentos quilómetros e cinco horas. Pela Estrada Nacional 1 circulava-se com a paciência dos sobreviventes, quilómetros e quilómetros, atrás de enormes camionetas
( mais vale perder um minuto na vida que a vida num minuto, dizia o enorme placard à saída de Lisboa quando a auto estrada do Norte acabava 25 quilómetros depois, a chegar ao Carregado)
que dançavam na frente dos pára-brisas como filmes filmes de suspense ou de terror. Sever do Vouga surgia a meio da tarde, depois de ultrapassadas as curvas finais da estrada do rio, quinta do Sobral, cumprimentar os futuros sogros, aquele beijo "na moça mais linda da terra" e a seguir, família á espera
( ai filho, estás mais magrinho! era a minha avó que já não me via há três meses; não queres comer nada? tenho aqui bolo inglês acabadinho de fazer, era minha tia que o sabia como meu bolo preferido; era a minha mãe que já só pensava no meu casamento daí a oito dias e era o meu pai com aquele seu ar terrivelmente calmo a dar-me o abraço com aquela suave palmada nas costas de quando está tudo bem e sinto-me feliz por te ter aqui...)
tempo dos beijos, dos abraços, de abrir o saco com as cuecas, as peúgas, as fardas sujas de lama, cheirar a suor verde e a tudo, tomar um bom banho, vestir o fato azul escuro, camisa branca e gravata pérola adequadas à cerimónia e, depois da missa das sete a que não fui, então sim: o meu baptismo!(padre, era homem baixo e barrigudo, bom garfo, que nunca faltaria àquele casamento, sorridente, amável e à frente do seu tempo
- tivesse ele ido a Papa e seria ele certamente o primeiro Francisco -
foi de condescendência sem paralelo.
Não era uma conversão mas a exigência da Igreja: sem aquele sacramento, não poderia haver casamento. De maneira que, depois da missa das sete, baptizado discreto, sem pompa nem circunstância com meu sogro de vela na mão trémula de conter o riso pela dificuldade do sacerdote, em bicos de pés à minha frente, no ritual com os sagrados óleos, a água benta e a esquecer-se do meu nome: "Uma assim é que nunca me tinha acontecido! Haja Deus que é Pai e misericordioso", dizia o sorriso malicioso do padre.
PASSARAM ENTRETANTO 46 ANOS que fui baptizado para me poder casar com a "moça mais bonita da terra". 
Éramos jovens e queríamos esse amor consagrado.  
Outros tempos e projectos; uma guerra colonial que ameaçava cortar anos de juventude e tantas vezes, levar também a vida. Éramos jovens com pressa de viver! Como muitos, desde sempre e hoje também.
Nem melhor nem pior, apenas de uma maneira diferente!

9 de setembro de 2016

AFINAL AINDA POR CÁ ANDO...

QUANDO ACORDEI não sabia onde estava. Dois mascarados de batas esverdeadas e um(a) outro(a) de bata azul debruçavam-se naquela espécie cama de faquir em que me encontrava estendido
e chamavam pelo meu nome ao mesmo tempo que perguntavam se estava tudo bem.
"Olá senhor Mário! Está tudo bem!?"
Aos poucos o meu cérebro foi saindo da neblina da anestesia Instintivamente quis levantar a cabeça mas parecia que carregava toneladas. A tentativa não passou despercebida à bata azul. Usava uma máscara e tinha uns óculos com uns olhos esverdeados por dentro como se fossem dois pequenos peixes sorridentes nos aquários. A voz era feminina e muito suave. Quase segredava ao meu ouvido direito.Logo o que oiço pior.
"Senhor Mário, tente manter-se calminho e o mais descontraído possível. Está tudo bem!"
Bom. Se está tudo bem, já não é mau. Vou seguir o conselho e por os neurónios a faiscarem para (re)perceber o que aconteceu.
De um lado e do outro, com intervalos regulares de uns dois metros, mais macas iguais, umas vazias, outras com umas espécies de múmias semi enroladas em lençóis brancos. Eu, apesar, de não me ver totalmente, estava na mesma figura. Procurei com os olhos um relógio. Era bom saber a quantas andava.
(Lá estava um, na parede do fundo já no corredor, um esforço de visão pela porta não totalmente fechada. Ponteiro gordo no 11. Ponteiro magro no 9. Um quarto para o meio dia?!)
Fui operado. estava no recobro. A intervenção no meu rim esquerdo tinha levado mais de três horas. Mas não sabia nada nem parecia haver ali alguém capaz de me dizer como foi. De repente, um monitor que mal podia ver, atrás de mim, entrou em pânico. Um alarme como se estivesse a ser assaltado. A bata azul apareceu logo. Mexeu no torniquete que tinha junto ao balão pendurado num cabide à minha direita e que só reparei que se ligava á minha mão direita envolta em ligadura com vestígios de sangue.
"Está tudo bem, senhor Mário. mantenha-se calminho que vai tudo bem! Foi só uma subidinha de tensão"
Enquanto agradecia mentalmente a persistência da bata azul e dos olhos esverdeados dentro dos óculos realizei que conseguia falar. Tinha sede. Era da anestesia. Perguntei o significado dos números que via no tal monitor que começara a guinchar atrás de mim. Explicou-me atenciosa e delicada. Adivinhei-lhe uns lábios finos por baixo da máscara a deixarem escapar um sorriso. Pressão arterial máxima (o de cima); mínima (logo por baixo). depois, por baixo as pulsações e finalmente a percentagem de oxigenação. Uma olhadela rápida. 18-10-80-92%.
(Está tudo bem, diz ela....)
Procurei alhear-me daquilo tudo, vaguear pela vida e não pensar muito nas horas que ainda teria de passar ali antes de subir para a enfermaria no serviço de especialidades cirúrgicas. Mas o vício ficou-me. E os meus olhos tinham agora dois alvos preferenciais. O monitor e aquela espécie de equação matemática de vida e a bata azul nem que fosse só para me dizer.
"Está tudo bem senhor Mário."
O movimento aumentara. Macas que saíram ora vazias ora com múmias semi enroladas nos lençóis brancos, outras que chegavam com outras múmias e aportavam junto aos monitores como eu. Doíam-me as costas da posição e da dureza da tábua. E o lado esquerdo junto à anca. Bastante. Apalpei e notei a ligadura. bem, pelo menos acertaram no rim. Já não era mau. A bata azul acompanhada por uma bata branca chegou-se ao pé de mim. Agora sim sabia que estava a sorrir por detrás da máscara e os olhos mais simpáticos ainda.
"Vai subir, senhor Mário. Felicidades!"
Como para o céu tenho a certeza de que não irei, fiquei com a certeza que finalmente ia sair dali para a cama. Sorri e agradeci. Quando saí para o corredor olhei para o relógio que se mantinha na parede com o ponteiro gordo no 4 e o magro a fugir para o 7. Vinte e cinco para as cinco? Já? Foi então que comecei a ficar mais 'calminho'...