1 de novembro de 2017

QUANDO A TERRA COMEÇAR A TREMER

CHAMAVA-ME ISMAEL PORTAL sapateiro com loja na rua dos Mercadores, quando se ia para a Ribeira das Naus, mais ou menos a meio caminho. Tinha dois aprendizes que faziam as entregas dos arranjos e também encomendas de sapatos e botas para a Corte de El Rei. 
Vivia no andar por cima da loja, com a minha esposa Beatriz, mãe das minhas filhas amadas Isabel e Mafalda. O meu filho Afonso, partira havia seis meses na nau Glória, rumo a terras de Vera Cruz e enviara carta, há duas semanas, que estava de boa saúde e partiria para o Sertão em caravana em demanda de ouro que, segundo se dizia, eram de abundância naquelas paragens.
Éramos felizes e estávamos num bom momento das nossas vidas..
Em breve seria o casamento de Isabel. com Rodrigo que servia na Guarda Real tendo conhecido Isabel que era, por sua vez, aia da princesa Maria.
MAS A TERRA IRÁ TREMER, pelas primeira horas da manhã quando a maior parte da população estiver nas igrejas e cemitérios já que é feriado e dia de Todos os Santos.
Primeiro um ronco fará estremecer os nossos corações, brotando debaixo de nós, debaixo do chão, de todo o chão, de todo o lado. Depois, tudo começará a abanar; casas que desabarão e logo se transformarão em montes de pedras e madeiros com os moradores nas ruas num terror desmedido enquanto outros ficarão logo ali, debaixo dos escombros. O chão abrir-se-á em fendas até ao inferno e as calçadas enrolar-se-ão como se de tapetes se tratasse. Para os lados da Sé rebentará incêndio que se propagará. e serão mais casas que arderão como archotes pela encosta até ao castelo.
Os céus fechar-se-ão num breu aterrador e por baixo dos nosso pés, o chão depois de uns momentos de quietude voltará a tremer e a provocar mais ruínas, mais incêndios; pessoas e animais que desaparecerão nas brechas abertas.


O PÂNICO LEVARÁ A MULTIDÃO para o Terreiro do Paço, porque se trata de local arejado e amplo e haverá soldados da Guarda Real que tentarão por alguma ordem e organizar socorro às vítimas. Pequenos grupos de homens e mulheres tentarão desesperadamente com baldes, panelas e outros utensílios que puderam encontrar, apagar alguns incêndios enquanto muitos outros andarão a correr de um lado para o outro sem préstimo mas apenas movidos pelo terror. Mas os incêndios por toda a cidade não pararão de aumentar. Milhares de velas colocadas para iluminar santos e altares por ser dia de Todos os Santos.

É ENTÃO QUE UM GRANDE CLAMOR ecoará no terreiro e logo centenas de pessoas se atropelarão numa corrida para as ruas que sobem para o castelo e para o bairro alto por cima das próprias ruínas e dos desgraçados que caíam no pânico da fuga. enquanto outros num pavor extremo encontrarão a morte já ali junto ao rio. Uma onda enorme tapando a visão do céu, vinda do lado da ribeira das naus, trazendo barcos grandes e pequenos, pedras, restos de árvores e destroços sem nome tudo arrasará, Mais alta que as casas, tudo abafará no fragor da pancada.


A ONDA IRÁ FAZER AINDA MAIS MORTES E SEMEARÁ AINDA MAIS HORROR e depois de uns momentos, outra se seguirá o rio subirá das margens depois de quase ter desaparecido e fará das ruas  um mar de destroços.
Beatriz, a minha mulher irá desaparecer, o mesmo sucedendo à nossa filha Mafalda, Um dos meus ajudantes será encontrado semanas mais tarde nos escombros da loja; do outro, nada se saberá mais. A minha filha Isabel sobreviverá uma vez que se encontrava com a família real em Caneças mas o noivo morrerá quando a empena de um prédio na rua dos douradores ruir no exacto momento em que ele se encontrar a tentar salvar um homem com uma criança ao seu colo.

QUANTO A MIM, ISMAEL PORTAL dirigia-me para a Sé à missa das nove quando tudo começará. Tentarei voltar para trás, já com o pânico instalado, mas serei atropelado por carruagem puxada a quatro cavalos que se espantarão, já que o cocheiro cairá do seu lugar e ficará ferido, ao meu lado, no meio da rua enquanto o rodado traseiro me passará sobre o peito e me quebrará o esqueleto deixando-me sem respirar. Acabarei por morrer quando segunda onda com os destroços acumulados pela primeira chegar ás portas de Santo António da Sé e tapar para sempre a luz.

NOTA FINAL. Ismael Portal nunca existiu mas esta minha ficção daquela trágica manhã do primeiro dia de Novembro de 1755, em que mais de 1/3 da população de Lisboa morreu ou desapareceu, e mais um número incontável de feridos pretende imaginar o relato de uma possível vítima de um dos terramotos seguido de maremoto dos mais violentos e mortíferos de toda a história...



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