O barulho que se ouviu, precedido de um grito, no passeio junto ao ascensor de Santa Justa foi mais um baque. Depois do susto transformado em surpresa, os transeuntes viram o padeiro caído de costas, camisa ensanguentada, ombro e braço direitos parecendo não pertencer àquele corpo tal a posição anormal que apresentavam, o enorme cesto que momentos antes levava ao ombro cheio de pão, partido em dois e o conteúdo derramado pelo passeio e pela faixa de rodagem da rua do Ouro e no meio daquela aflição, uma mulher ainda jovem com um casaco azul de lã por cima do que parecia ser uma farda de criada, meia de lado, olhos muito abertos, uma mancha de sangue na saia e com queixas na perna direita que parecia partida mas viva, ao lado do padeiro de olhos muito abertos, morto. O polícia de giro chegou a correr, do outro lado da rua, apitando estridente, na correria, ao mesmo tempo que gritava:
“Façam o
favor de se afastar…”
O círculo que
entretanto se formara em volta da cena, alargou ligeiramente, o suficiente
para o agente da autoridade entrar para o meio e continuar gestualmente,
bastão em punho, a dizer:
“Façam o favor de
se afastar…. Algum médico aqui?”
Médico não havia
mas surgiu a primeira testemunha…ainda a gaguejar pela violenta surpresa:
“Eu vi… eu
vi…foi ela…foi ela que caiu lá de cima… foi ela que matou o padeiro!”
O padeiro, era
uma figura conhecida ali, já que diariamente ao longo dos últimos cinco
anos fazia a distribuição do pão pelos restaurantes e cafés. João –
ninguém sabia o apelido – mas era o João, para toda a gente, sorridente, bem
disposto e amigo dos miúdos pobres que o esperavam, sentados junto ao
ascensor, para se aproveitarem da sua generosidade.
“Eu ouvi o grito
mas quando olhei já estavam assim… no chão…”
“Não, eu vi ela
cair em cima do João… foi ela que matou o João!”
Ela era Maria da
Conceição, dezassete anos, criada em casa duns ricaços que moravam prós
lados do Chiado - veio depois a apurar a investigação – que, por
entre choros e lágrimas, também ficou a saber o resto de toda este
drama naquela manhã de 10 de Julho de 1942, fazia o ascensor 40 anos!
Estava em casa da
família Portela, que moravam num palacete na rua da Misericórdia. Tinha
vindo com 13 anos de Alvações do Corgo, pequena povoação de 470
habitantes, do concelho de Santa Marta de Penaguião, situada na margem
esquerda do rio Corgo, afluente do Douro. Maria da Conceição viera para
Lisboa, mandada chamar por uma tia solteirona, cozinheira, em casa dos Portela
há mais de vinte anos, sabedora da estima que a senhora dona Emília tinha
por ela e mais das dificuldades que a irmã e o cunhado passavam lá na
terra quisera que a sua sobrinha dilecta não ficasse “enterrada viva” lá
na terra e, aproveitando o facto de ter sido despedida a sua ajudante por
desviar alimentos logo sugeriu cautelosamente a Maria da Conceição…
“Mas, ó
Maria da Paz, não será muito nova para a ajudar?”
Questionou
hesitante a senhora dona Emília ao ouvir a proposta da cozinheira. Que
nada, não senhora. Que a miúda era muito jeitosa para a cozinha que assim
tinha plena confiança – era só o que faltava – na sua ajudante, que podia
inclusive contar com ela para outras tarefas, como recados e que a senhora
ia ver que passado o primeiro impacto, ela se adaptava e logo seria uma das
melhores.
“Está bem, Maria
da paz… mas, atenção, se não for boa para o serviço não quero cá
encobrimentos… vai recambiada… entendido, Maria da paz? Só para você não
dizer que nem uma oportunidade dei. Também nunca me pediu nada.”
“Obrigada minha
senhora. Não se vai arrepender!”
Quatro anos
passam num instante mas, em quatro anos também se passa muita coisa. Maria
da Conceição prendeu-se de amores com um rapaz bem mais velho, um tal Álvaro já
em idade de ir para a tropa, ao fim de um ano e pouco de estar por
Lisboa. Ele era empregado de mesa num restaurante da rua do Alecrim, alto
moreno, bem falante logo se deixou também encantar por aquela moça vinda
lá do norte, também ela morena já num corpo de mulher, apesar dos quinze anos
que a jovem Maria da Conceição consciente da diferença de idades e com
medo que isso fosse motivo de separação, logo resolveu aumentar para
dezoito e meio, enfim quase dezanove! O namoro foi crescendo de
intensidade, a pontos da tia a ter avisado. Pela terceira vez.
“Maria da Conceição,
vê o que fazes da tua vida, rapariga! Olha que eu bem sei o que se passa e
podes ter a certeza que conto tudo á senhora…”
“Mas ó tia, eu
gosto dele. Vamos casar e…”
“Casar??? Mas tu
endoidaste, rapariga??? Estás a minha guarda e não te admito essa falta de
respeito, pior, de juízo, menina. Fazes favor arranja maneira de acabares
com o namorico. Eu até gosto do rapaz mas…”
Maria da
Conceição não disse que sim nem que não. A sua paixão crescia todos os
dias. E, um dia, endoidou de vez e aceitou o convite que Álvaro lhe
fez para lhe mostrar o quarto onde vivia, umas águas furtadas num prédio
já gasto pelo tempo,mas com uma vista espantosa para o Tejo. Combinaram
tudo para um Domingo que era a sua tarde de folga e aproveitando o facto da
tia ir visitar uma cozinheira amiga para Campo d’ Ourique estimou que
tinha a tarde livre para ir ter com Álvaro que também tinha folga.
Em três
meses, tudo se precipitou na vida de Maria da Conceição. Álvaro partiu
para a tropa e pouco depois veio dizer-lhe que tinha sido mobilizado para
os Açores. Era a guerra e era preciso proteger as ilhas. Maria da
Conceição despediu-se em prantos. A tia soube dos choros e à primeira
repreendeu-a pois julgava que o namoro com Álvaro já tinha acabado. O que
ela não sabia é que não só não tinha acabado, como tinha a sobrinha
grávida.
Uma manhã, o
carteiro trouxe uma carta da Ilha Terceira. Mas não era de Álvaro. Quem a
escreveu chamava-se Luís Filipe e dizia-se amigo de Álvaro. A carta não
era extensa antes pelo contrário, de modo que não foi difícil para
ela ficar a saber que Álvaro tinha tido um acidente de viação e
falecera a caminho do hospital militar da base americana.
Maria da
Conceição não conseguiu ler mais nada, completamente desvairada saiu porta
fora sem conseguir sequer dizer fosse o que fosse, numa correria
desenfreada sem destino, num choro que fazia toda a gente com quem se
cruzava ficar a olhar espantados com o aspecto aflitivo da jovem.
Sem saber como,
encontrou-se na plataforma do cimo do ascensor de Santa Justa, local onde
fora várias vezes com Álvaro. O Sol do meio dia bateu-lhe em cheio no
rosto, atarantou-a, cegou-a! As suas últimas palavras foram o nome do
namorado e … atirou-se! O homem que estava a uns cinco metros quis impedir
mas chegou tarde…
Maria da
Conceição deu um grito, já no ar, mas não impediu a sua queda no cesto de
João, o padeiro que nesse momento passava, em baixo.