AV. ÓSCAR MONTEIRO TORRES 66 1ºE
Freguesia S. João de Deus Distrito e Concelho de Lisboa
Com a morte prematura do meu avô Adriano, cancro no pâncreas e a ida do meu tio Reinaldo para Sever do Vouga, a avó Judite e a tia Cita ficariam sós no rés-do-chão da rua Angelina Vidal (é certo que ainda lá ficava o meu primo João, filho da tia Cita, que doze anos mais velho em breve se casaria). Um ano depois da partida do meu tio para o norte, a decisão que não sendo minha iria mudar a vida de todos, principalmente a minha. Juntar a família! Concordaram todos que seria boa solução mas para a concretizar esse era necessário apartamento maior. Rumavam todos os sábados para os lados do Areeiro, Praça de Londres, avenidas João XXI e de Roma e bairro de Alvalade.
Casas espectaculares de construção mais recente, já sem os tais quartos interiores, quartos de banho completos, boas cozinhas e salas, amplas janelas, para avenidas largas e arborizadas.
Vinham sempre encantados! Depois de muitas horas gastas a calcorrear praças, avenidas, alamedas e ruas, ler anúncios no Diário de Notícias, no número 66 num prédio de gaveto da avenida Óscar Monteiro Torres, viram uns escritos no primeiro andar esquerdo.
Resolveram tocar à campainha da casa da porteira que logo atendeu. Perguntas para aqui perguntas para ali, quanto à renda nada de novo, eram os mesmíssimos mil cento e dez escudos e a casa estava para vagar pois o inquilino tinha falecido e a viúva resolvera ir morar com o filho que estava para o Algarve e assim chegara a acordo com a senhoria para deixar o apartamento
no prazo de dois meses. Que já havia um casal interessado mas isso só falando com a senhoria! O meu pai e o meu tio perguntaram se havia possibilidade de ver o apartamento e a porteira que sim que a senhora não estava pois tinha ido passar uns dias a casa de uma prima mas tinha a chave, justamente para permitir aos interessados verem a casa, que era muito boa, excelentes divisões,
três grandes quartos, um com uma pequena casa de banho,
outra casa de banho completa que era um salão, uma boa sala
e uma sala de jantar enorme, duas boas despensas,
isto ia dizendo a porteira enquanto subiam ao primeiro andar
Encantamento geral!
E, depois ainda havia algo mais a acrescentar.
A zona já de si com muito comércio, no prédio as lojas: um talho, uma peixaria, um lugar de frutas e legumes, mais um sapateiro,
uma loja de mobílias e uma taberna. Próximos dois cafés e uma pastelaria, mais na avenida de Roma logo ali, várias lojas de modas e sapatarias, duas relojoarias e ourivesarias e uma loja de discos e instrumentos musicais de Valentim de Carvalho, para o qual o meu avô Adriano trabalhou tantos anos.
Coincidências!
Despediram-se da porteira, agradecendo. Trocaram contactos,
a porteira entregou-lhe um do senhorio, um tal João Labrincha,
O meu tio garantiu que viriam também as irmãs para ver também o apartamento.
Segunda-feira, seis horas da tarde!
De novo, tocar á campainha da casa da porteira que parecia não estar. Mau! Insistência. Uma, duas vezes, a segunda prolongada. Um rapaz meio ensonado abre a porta:
“Que é?”
O meu tio:
“Ah! Desculpe. A senhora porteira não está?"
O outro num abrir de boca desleixado:
“É a minha mãe: mas está no segundo direito no senhorio.”
O meu tio:
“Ah! É que era por causa do andar que está para alugar… já cá estivemos no sábado e ela mostrou-nos o andar”
O outro:
“Mas, os senhores toquem no segundo direito e ela atende-os. O nome é Celeste.”
Tudo bem. Adeus. Fechou a porta com o mesmo ar ensonado.
Segundo direito! Subiram mais um andar, segundo direito, ouviam-se vozes de crianças e um aspirador a trabalhar e um cão ladrou junto á porta. Tocaram. Uma. Duas vezes. Um miúdo magro e moreno abriu (deve ter a idade do Mário Jorge, comentou a minha mãe) e ouviu-se uma voz feminina de dentro.
“Ó Celeste vá vem quer é, por favor!”
Já porta aberta com o miúdo e um pequeno rafeiro castanho no hall e o meu tio e os meus pais no patamar, aparece a Celeste em passo de corrida.
“Ah! Desculpem, até deixei o aspirador a trabalhar… este menino…
menino João José estou fartinha de lhe dizer para não abrir assim a porta sem se saber…Ah! São os senhores! Boas tardes!”
O meu tio:
“Boa tarde! Pois, o prometido é devido… trouxe a minha irmã desta vez… porque estamos realmente muito interessados…”
De dentro a mesma voz feminina:
“Quem é celeste?”
“São aqueles senhores, que eu falei á senhora, interessados, no primeiro andar.”
“Mande entrar para o escritório que eu vou já.”
Entraram perante o olhares observadores do miúdo e do cão.
“Sentem-se. É só um momento que a senhora já vem.”
Enquanto esperavam não trocaram palavra. Limitaram-se a olhar em redor. Mobília antiga em pau santo de torcidos e tremidos, secretária, estante,
cadeira de braços e mais duas cadeiras sem e um sofá grená de dois corpos. Carpete de Arraiolos. Nas paredes pequenos quadros com motivos marítimos. Quando a senhora apareceu á porta da sala, a surpresa de todos os quatro não podia ter sido maior.
O meu tio e a minha mãe em uníssono.
“Mas és a Ivone…?”
Ela ficou especada com não menor admiração à porta do escritório.
“Olha, o Reinaldo… e a Olga e o... Alfredo?”
E, foi assim que voltaram a encontrar-se 20 anos depois do último ano em que passaram férias na Trafaria, O meu tio e a D. Ivone ainda tiveram um namorico de férias.
É claro que durante o primeiro quarto de hora se falou de tudo e mais alguma coisa menos do andar que estava para alugar.
Depois, quando finalmente regressaram ao assunto principal foi fácil fechar o negócio.
Passado dois longos meses, a mudança fez-se!
E a minha vida mudou com a mudança!
(Coisas que contarei nas 4ª e 5ª partes desta Lisboa que eu amo)
Notas: Na foto de cima, o 66 é o prédio mais claro e segundo da esquerda; na de baixo, após obras ficou rosa!