27 de maio de 2015

UMA CERVEJA ÀS TRÊS TABELAS

No bilhar, como na cerveja e nos tremoços, Micá era o maior do bairro.
A arte da carambola fora o tio Gilberto que ensinou. O saudoso Giló.
Chegou a campeão nacional de três tabelas Só uma vez, é verdade.
O bastante para se tornar a estrela do bairro.
Camisa imaculadamente branca e impecavelmente engomada,
‘papillon’ preto com pintas brancas a fechar o colarinho alto,
colete cor de vinho com emblema do clube no ombro esquerdo
calça cinza bem vincada e sapatos pretos, um espelho de verniz.
Gentil e educado no falar. Mestre a ensinar. Elegância de bailarino a jogar.
Quando se esticava em cima do pano verde, perna flectida na borda da mesa
bigode fininho expressivo e olhar de águia na ponta do taco.
A pancada era tão delicada que as bolas ganhavam vida, 
corriam pelo pano, numa valsa a três enquanto Giló se perfilava, 
taco na mão. ao lado da mesa como soldado da guarda do palácio real. 
Eternizá-lo em pintura seria mais que merecido.
Micá não tinha a elegância do tio. Perdia-se em floreados e fantasias, 
sem a humildade, nem a discrição de Giló, garantiam os que o conheceram.
Gabarola? Não é defeito, é feitio, desculpavam-no por sua vez os adeptos.
Micá detestava comparações e muito principalmente com o seu mestre.
Cada qual no seu lugar…’ respondia, sem humor quando ouvia conversas.
Micá nunca se limitava a fazer carambola. Explicava sempre os efeitos,
a quantidade de bola a apanhar, uma, duas ou mais tabelas antes da final.
Às vezes até pedia. “Digam lá como querem esta…”.E, alguém dizia.
Agradecia, no fim, os aplausos entusiásticos dos amigos e dos outros.
Já na parte de despachar cervejas e tremoços não se lhe conhecia o mentor.
Quando lhe perguntavam de onde lhe vinha o gosto, encolhia os ombros.
“Vocês sabem como é, tremoços dão-me sorte mas fazem-me imensa sede”.
Então bebia sempre duas ou três canecas, antes de começar os tremoços,
que depois parecia saborear, um por um, antes de se decidir pela tacada.
Micá treinava, todas as tardes, no clube, o único do bairro com mesa de bilhar.
Entrava, cumprimentava os presentes e o Justo, ao balcão numa urgência.
A caneca cheia de cerveja no topo um anel de espuma e o pires com tremoços.
O bilhar de profissional, impecavelmente nivelado, mesa de seis pernas. 
Tabelas aquecidas. Pano novo. Bolas de marfim. O taco do Micá, claro.
Nessa tarde parou tudo quando ele entrou; parou o gupo do jogo dos matrecos
Parou a mesa da sueca dos irmãos Solidó; parou o Anhuca, a ‘solitaire’
parou o Manel Zarolho que jogava setas; parou o Justo atrás do balcão.
Micá também parou perante o inusitado silêncio, tentando adivinhar o insólito.
Sentado num banco alto, ao balcão, a acabar a bagaceira, estava o homem
a balançar as pernas com um sorriso de orelha a orelha. Micá teve um arrepio. 
Não foi só a vestimenta que o impressionou. Foi aquele bigodinho risonho
e o olhar de águia que lhe fez ver ali o tio. Cruzes credo! Pensou Micá.
O tio Giló já morrera há cinco anos, na Páscoa. Mas aquele…quem era?
‘Anacleto Mão Firme.’, e estendeu a mão para um aperto, firme.
Começaria na próxima semana. Micá aceitaria ser cabeça de cartaz?
Ora essa seria uma honra! Na Sociedade Filarmónica Trompete de Ouro.
‘E, quando posso ir treinar na mesa? perguntou Micá já a antecipar o ‘show’.
O outro, num repente de surpreso. A mesa? 
Micá julgou o outro demasiado ignorante. ‘Sim, a mesa…então o bilhar…
Anacleto, relâmpago no olhar de águia, agitação no bigodinho inquieto. 
Estremeceu. 
‘Ah, peço desculpa. Julguei que sabia. O festival é de cerveja...
e a juntar timidamente. 
"Para si, providenciámos uns pratinhos com tremoços..."