13 de junho de 2020

AO CAIR DO PANO (I, II e III)




AO CAIR DO PANO I

Vítor subia, então, a escada de madeira que levava ao quarto evitando cuidadosamente os terceiro e quinto degraus que rangiam sob o peso, entrava com passo de sombra até se sentar no pequeno banco forrado com o mesmo tecido de ramagens dos cortinados da janela que dava para a varanda, da colcha e das grandes almofadas que vestiam a cama e olhava-a adormecida, cabelos ruivos espalhados pela almofada, lábios escarlates semicerrados, respiração num suave e compassado erguer do peito muito branco, a contrastar com o preto das rendas da camisa de dormir.
Ficava ali parado no tempo, contemplativo no refazer anos de vida em comum, antes de se retirar tão sombra como chegara, às vezes apenas para ganhar novo fôlego e voltar quando o sono invalidava qualquer resistência em se deitar ao lado dela.
Como era possível que já não a amasse?
Tantos anos de união. Feliz? Sim. Podia dizer que sim. Continuava incapaz de se desligar daquela adoração silenciosa e de lhe confessar a sua traição embora a irreverência da juventude de Amália e aquela paixão tumultuosa que o fazia sofrer lhe provocassem, a toda a hora, sentimentos contraditórios muito fortes a que não sabia como resistir.

AO CAIR DO PANO II
Amanhã, quando o dia nascer e os primeiros raios de Sol atravessarem as vidraças e a brancura translúcida dos cortinados da enorme janela da sala começando a iluminar a testa larga e a cabeça já de cabelos fugidios do major, então, será o sinal de que esta noite, D. Quitéria, na hora da deita, esticou o braço direito até ao dedo indicador, apontando a porta do quarto numa ordem de "general":
"Abílio, faça-me o favor! Hoje, vai dormir para o sofá!"
e, o major habituado, por educação e por profissão, a aceitar ordens superiores, sem um gesto de tímida discordância, sem uma palavra de revolta balbuciada, desceu a escadaria larga de mármore, em meio caracol até à sala, almofada debaixo do braço, pijama às riscas e chinelos azuis com duas estrelas douradas, rumo ao sofá, numa desesperança de menino travesso e ouvia, lá do alto, a porta do quarto bater, sem uma boa noite sequer.


AO CAIR DO PANO  III

A tempestade pareceu adormecer quando o vento abrandou e o mar recuou para lá da linha de rochas que agora parecem pequenas bossas no areal ensopado na espuma das ondas.
Tinham ido os dois dar uma volta à beira mar mas o dilúvio apanhara-os desprevenidos; correram a abrigar-se na pequena barraca de madeira onde, no Verão, o banheiro guardava lonas amarelas às riscas azuis das barracas, bancos de madeira e cadeiras de repouso e de realizador de cinema, e outros materiais. A porta apenas com um pequeno fecho, sem cadeado, aberta e o espaço com duas cadeiras desengonçadas de lona rota encostadas à parede por baixo da pequena janela ao lado da porta, de vidraça partida. Curiosamente a cabana conseguira reter ainda uma pequena parte do calor que o Sol de Maio deixara quando aquecera a manhã.
Entraram de roupas encharcadas. Ela começou a despir-se até ficar apenas com a cueca reduzida azul turquesa que contrastava com a pele morena. Ele, após um momento de hesitação, começou por despir a camisa e foi tirando as calças, lentamente, olhando-a, tentando estudar a sua reacção. Ela já se deitara no chão, apoiada no cotovelo esquerdo, perna direita flectida e um sorriso incendiário nos olhos verdes agora mais brilhantes.
O Sol regressara entrando pela janela, manchou o chão de uma claridade suave, uma mancha que lhe cobriu o corpo praticamente nu, irresistível para ele que devagar acabou por se deitar o pé dela, parecendo então limitados no espaço ocupado pela claridade.
Foi quando ela o puxou para si e o beijou. Primeiro suave depois quando ele a agarrou pela cintura e a apertou, os lábios de um e do outro esfregaram-se até doer e durante uns instantes, os olhos verdes pareceram cegá-lo de luz, numa espécie de hipnose.
Os dois corpos agora nus, entrelaçados numa espécie de bailado cozido ao chão da cabana, por fim, ela gritou três gritos gemidos, abafados na agitação do peito dele quando os dois terminaram praticamente ao mesmo tempo.
Foi a primeira vez...


7 de junho de 2020

JÁ AMOU, HOJE!?

É suposto amar, diariamente, pelo menos uma vez,
durante um segundo que seja?
Então? Já amou, hoje?
Que insistência! Amar o quê?
Sei lá. Uma pessoa claro,

uma planta, uma árvore, 

um cão, um gato, outro animal qualquer,
uma coisa qualquer,
um objecto, um livro, um filme, uma música, um jogo,
um momento especial, um instante inesquecível...
Já amou hoje?
Mas, que raio interessa isso?
Acho que devo ter gostado de qualquer coisa,
aliás se não tivesse, teria logo dito, porque eu sou assim.
Se não gosto digo que não gosto e pronto.
Ah! Amar é gostar muito.
Pois, não sou de grandes intensidades. Mas...
Já amou hoje?
Outra vez? Afinal é assim tão essencial amar?
Por exemplo, ainda não consegui amar o dia,
mas gosto, mesmo assim, de estar por cá.
Chega?
Amar o que o acordar nos concede como, por exemplo, vida.
Sim. Comece por aí.
Não, não é egoísmo. É essencial.
Ame a vida todos os dias.
Ah! É importante dizê-lo!?
Então cá vai.
Minha vida, já te disse que te amo!? Amo-te vida!
Não custou nada...