16 de maio de 2017

O MEU PAI NUNCA ME OUVIU...

"O meu pai nunca me ouviu..
Disse-me o Vítor num dia em que, sentados à mesa do café, discorríamos sobre a nossa adolescência quando, depois de quase vinte anos sem nos vermos e nos reencontrámos. 
"Não me recordo de, alguma, vez o meu pai e eu termos tido uma conversa a propósito, fosse do que fosse."

Por detrás das lentes graduadas, foi possível aperceber-me de uma sombra de desapontamento e tristeza no seu olhar pisco. Aproveitei para bebericar o café já que não consegui inventar nada de muito prestável para preencher o intervalo.
Mas ele logo prosseguiu:

"Lembro-me muito bem das viagens que fiz com ele, quando ia visitar as empresas e as herdades e todos o tratavam por senhor engenheiro e para mim, apenas tinham um sorriso comedido e um acenar de cabeça. Acho que já pensavam que, um dia mais tarde, eu também me tornaria engenheiro ou qualquer outra coisa e ficaria assim, sério, reservado e áspero como ele, à frente de tudo aquilo."
Um segundo apenas. Para respirar a frustração acumulada.
"Nunca me ouviu sobre nada. Determinava na sua cabeça e deixava escrito um recado, na secretária do escritório que montara em casa e onde além dele só entrava minha mãe e a Amélia, aquela criada já velha que tu ainda conheceste."
Assenti. Conheci muito bem a Amélia. Aparecia sempre, à hora certa do recreio, na escola, para levar o lanche num cestinho de verga. Pão com compota e manteiga, bolachas e um termo com leite e chocolate quente. 
Teve um sorriso. Eu tinha estado a pensar em voz alta.

"Fomos ficando, cada vez mais longe um do outro. Depois veio a terrível doença. Crises em cima de crises. Ficou pele e osso com os tratamentos de químio e radio. Numa das vezes em que foi à urgência do hospital ficou internado",
Uma pausa para limpar as lentes embaciadas pela emoção.
"Uma tarde, antes da visita, o médico pediu-me para ir ao gabinete e disse-me que provavelmente o meu pai já não passaria dessa noite. E eu, quando cheguei ao quarto, fui segurar-me à cama dele, como se isso evitasse que ele fosse embora para sempre. Pressentiu-me chegar. Virou para mim a face magra, os olhos secos e encovados ainda pareceram sorrir, antecipando um pedido trémulo: 
(Fala comigo...) 
com as lágrimas a escorrerem-me pela voz, sem saber o que dizer quis-me lembrar das viagens que fazíamos e comecei: 
Lembras-te daquela vez que fomos...
foi quando senti que a mão dele que viera trémula ao longo do lençol, agarrar-se à minha na guarda da cama, ficou ali sem fria e inerte. 
O meu pai acabara de morrer sem que eu pudesse dizer que me tenha ouvido, uma única vez na vida...