28 de janeiro de 2014

SAUDADE


Dentro de nós,
existe uma máquina do tempo
a que chamamos saudade;
que nos transporta para a idade
que valeu a pena.

LISBOA


É uma luz intensa que desce pelo rio. 
reflexos de cor que enchem a praça imensa.
Cacilheiro que lança, no cais, gente apressada.
Em cada esquina, em cada rua, vida intensa.
É o dia que acorda na cidade estremunhada.
Por uma noite vadia de fado cantado por vielas.
Uma varanda sobre telhados de um velho casario.
A liberdade nas asas de uma gaivota alvoroçada.
Um castelo, uma torre com vultos de caravelas.

A cidade onde nasci pode ser berço e abrigo.
Ninho de andorinhas em beiral de Primavera.
Um banco de jardim onde me sento contigo.
Um beijo de luar, um sonho, uma quimera.

27 de janeiro de 2014

HOLOCAUSTO


A linha de comboio acabava às portas da morte.
Havia fardas cinzentas manchadas de esqueletos,
e rostos de olhares bárbaros, lábios frios.
Botas que se enfileiravam na lama
ao lado de cães irrequietos que rosnavam como cães.

Gritos que eram ordens. Ordens que eram gritos.


Dos vagões saltavam corpos curvados, aflitos,
de homens, mulheres, novos e velhos, às centenas,
numa avalancha de fantasmas, já fantasmas,
e, no meio do silêncio da violência do medo
ouvia-se o choro esfomeado das crianças.

Gritos que eram ordens. Ordens que eram gritos.

Vultos de dor, despidos de espanto amargurado,
sem oportunidade para se transformarem em pássaros
com asas de liberdade, para um voo sem regresso.
Os seus nomes já engrossavam a lista dos mortos.
No sonho da vida, acordavam rodeados de massacres.

Depois, acabava tudo!
Já não havia gritos que fossem ordens.
Ou ordens gritadas.

A única coisa que se ouvia era aquele silêncio irrespirável.

15 de janeiro de 2014

06:00


Era de madrugada,
quando num sobressalto, vindo do nada.
a locomotiva amarela passou por dentro de mim,
num repente, a apitar estridente,
sem carruagens atrás, nem na frente,
sem princípio, sem meio, nem fim.

Fiquei a pairar qual astronauta sem nave,
num pairar suave, lugar extraordinário
buraco negro, com falta de cenário,
sem céu, sem lua, sem estrelas a brilhar
sem mar, sem praia, nem linha de horizonte
sem árvore, sem rio, sem vale nem monte
sem terra, sem chão, sem caminho para andar.

Gritei um grito que saiu de dentro de mim,
mas não ouvi mais ninguém a não ser o meu próprio grito.
Olhei para dentro de mim, aflito
e lá estava ela, a locomotiva amarela a piscar
com dois olhos vermelhos,
um zero e seis no esquerdo
e o direito com dois zeros.
Vou fingir que está tudo bem, pensei,
isto é pesadelo, partida de mau gosto
ou sirene para alerta de fogo posto.

E, foi assim que acordei.

Fazer a barba e escovar os dentes, durante o duche.
Beber meia chávena de café e meter um ‘croissant’ no bucho.
Vestir, calçar, pegar a pasta e correr para o carro.

Chego à estação central com o comboio a partir
apinhado de gente sonolenta que já não sabe sorrir
Todos os dias é sempre a mesma coisa.
Gente que vejo sem conhecer
e ninguém me conhece, a mim.
Gente que, como eu, finge que está tudo bem
e que a vida tem de ser assim.

HÁ DIAS ASSIM


Noite e dia confundiram-se num céu escuro, mais que cinzento.

Não imaginei caminharmos à chuva, naquele dia,
tendo apenas por abrigo, o meu descuidado guarda-chuva 
de vareta quebrada.

Mas, ao fim de uma eternidade de minutos
de espera ansiosa e desabrigada, lá vinhas tu, sorrindo, 
ao fundo da calçada.

Acenaste, acenei,
apressaste o passo numa espécie de corrida tímida,
alarguei o meu numa pressa de vento.

Num aperto de braços e de beijos,
debaixo do desajeitado abrigo,
acertámos o passo, e fomos
eu contigo e tu comigo,
como se fôssemos um só a caminho do Sol.

AMANHCER

Amanhã, pela hora da aurora,
um clarão vindo de leste surgirá no cimo da encosta florestada
vagueará entre pinheiros, alas desalinhadas de eucaliptos, 
em relâmpagos de sombras 
e assim irá descendo até às margens do rio
para incendiar, de amarelo e ouro, as frondosas mimosas
numa desordem de cor espelhada nas águas serenas.

Amanhã, pela hora da aurora,
a capoeira em alvoroço, galo cantor de ansiosas alvoradas,
enquanto a coruja recolherá à toca escura, numa pressa
pois se de noite procura a vida, na claridade do dia,
diz-lhe a sabedoria ser melhor andar guardada e discreta.

Amanhã, pela hora da aurora,
haverá bandos de pequenas aves, em gritaria matinal
de ramo em ramo, em voos rasantes pelos canteiros no quintal
numa sofreguidão de bater de asas, como crianças
em jogo da apanhada.
E o exército de girassóis de altas pernas verdes
grandes olhos castanhos e recortadas cabeleiras amarelas 

agitam-se na ligeira brisa que do norte
chega leve e mansa como espuma de algodão.

Amanhã, pela hora da aurora,
na claridade branca, de um novo dia que acaba de nascer
os nossos rostos menos jovens de tantas primaveras gastas,
os nossos gestos mais lentos de tantas tentativas esquecidas
será o tempo da primeira vez, dos beijos e das carícias,
do namoro de quem não precisa de mais nada para se ter
dos silêncios e das palavras que não é preciso dizer.

NÃO ESQUEÇO


Sei do teu corpo, cada gesto, cada canto,
o afago dos teus lábios, o brilho do teu olhar.
Povoas os meus sonhos em cada noite de encanto,
no silêncio das palavras e lá vamos devagar.
Para te sentir minha, no instante de sonhar.
Tudo tem um começo, tudo tem um entretanto,
tudo chega, tudo parte, tudo anda sem parar.
Para se ser feliz, basta do pouco fazer-se tanto
uma cabana numa praia com a lua à beira-mar.

Nesta cama em que acordo desta fantasia louca
o tempo voa e a ternura fica sempre pouca,

ACHO-LHE GRAÇA


Acho-lhe graça. 
Pronto!
Não sei se é a madeixa ruiva
que lhe escorrega para a testa
se o olhar esverdeado e traquina
que a ilumina como uma festa
se os lábios finos, rosados,
tão bem desenhados
que parecem sempre sorrir
se aquelas pequenas sardas
na pele branca de marfim
se o jeito de andar, solto,
mais um pairar de tão leve
que me deixa fora de mim.

Acho-lhe graça.
Pronto!
E, eu não consigo evitar,
fico-me por ali, de pé,
com a chávena na mão direita
a fumegar pensamentos tontos
junto ao balcão do café.
E ela chega, através da esplanada
através da montra, através do ar
e eu não consigo evitar,
não sei se é a madeixa ruiva
se a traquinice no olhar
se os lábios bem desenhados
se é ela a pairar.

Acho-lhe graça.
Pronto!
E fico ali, meio tonto!

MURMURA, APENAS


Se me amas de verdade, não precisas gritá-lo por aí!
É agora que deves dizê-lo, baixinho,
assim num murmúrio apenas, no meu ouvido,
como o piar de um passarinho,
como um vento que sinto desapercebido
enquanto dançamos esta melodia em mi.

SEM ABRIGO

A rua está deserta e escura, fria.
Hoje não chove mas o vento assobia.
A princípio não se percebe bem
o que se vê, o que se sente.
Se umas páginas de jornais, um cartão,
se uma manta de farrapos, uns trapos,
se um corpo de homem, somente,
se apenas o respirar de um coração!

MÃE

Quando me pariste num esforço de amor
eu era apenas um grito ensanguentado e frágil
que tu abrigaste no teu peito inquieto
que tu protegeste no teu abraço ágil.

Agora que gastei décadas da minha vida e da tua, 
não sou mais aquele ser cambaleando insegurança!
Mas sem querer, eu continuo a querer-te tanto
que me encho de saudades de já não ser criança.