24 de março de 2021

SOMOS MUITO, ASSIM

 

Somos muito, assim.
Nunca sabemos o verdadeiro valor de algo que acontece, que vivemos num dado momento, até que se transforme numa memória, longínqua.
Um dia, ao revivê-lo manchado pela saudade, percebemos que ele foi tão sublime e afinal passou-se como se não estivéssemos estado.
Somos muito, assim.
A nossa memória sendo tão imperfeita não nos permite recordar aquilo que não fizemos, não vivemos, como dizia Pessoa, é justamente do que não fizemos, não vivemos de que temos mais saudades.
Somos muito, assim.
Seres paradoxais servidos por memórias selectivas, punitivas, raramente purificadoras. Somos, então, maioritariamente apaixonados pelo futuro, perdulários do presente, saudosos do passado.
Nesta atrapalhação que nos faz pensar hoje aquilo que fizemos ontem e que tencionamos fazer amanhã, vivemos um presente matizado por memórias, acontecimentos e projectos. Um presente demasiado para que possamos olhá-lo com a atenção que merece.
Somos muito, assim.

O QUE EU NÃO QUERO

 

Não quero sonhar campos verdes, por baixo de céus azuis
nem manchas de girassóis, sempre à procura do amarelo solar
nem casas de telhados verticais a escorrerem pelas encostas
nem despertares de luz a trespassar vidraças adormecidas
nem crepúsculos de sóis em fogo na linha do horizonte
nem luas de prata a sorrirem estrelas cintilantes no céu
nem rios inquietos que se afogam em mares sem fim.
Sonhos para serem mesmo sonhos devem ter impossibilidades,
devaneios loucos, inconscientes, mas libertadores como aves
bandos pelos ares, um súbito e multicolor bater de asas,
numa vertigem de encantamento, um sopro da invulgaridade.

ABRIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIINDO

 

Há dias em que acordo com vontade de fazer imensas coisas embora, por vezes, não saiba bem quais.
Vou até à janela, afastar o cortinado sonolento, espreitar a rua, o movimento ainda é escasso, os carros continuam tranquilos na borda dos passeios, a paragem do autocarro só tem duas pessoas mascaradas separadas pela distância do medo, o café defronte ainda não abriu nem vai abrir ainda e só a florista tem estado aberta porque, justifica quem decide estas coisas, que flor é delicadeza tão caprichosa e tão frágil quanto o amor e murcha se não for regada todos os dias.
O quarto de banho aguarda-me para a primeira incursão, verter águas, enfrentar o espelho do lavatório, arregalar os olhos perante o eu, tão horrível que nem o sorriso de bom dia anula os papos dos olhos e a vontade imensa de lhe deitar a língua de fora.
A barba por desfazer e o duche para animar o esqueleto e limpar as poeiras da noite vão ter que esperar o tempo do pequeno almoço, de cafeteira do café ao lume, três fatias de pão de forma a ganharem cor na torradeira, a compota de frutos vermelhos e o queijo gouda fatiado a espera mas, antes de tudo, o copo de água, em jejum, com um comprimido, para a tensão se manter mais ou menos e uma cápsula para a próstata não incomodar a bexiga, com a mania das grandezas.
Tantas coisas por fazer mas que não contam como coisas por fazer porque fazem parte destes meus acordares diários e até sem a novidade do inesperado e o incentivo do novo
Mas, como acordei, e antes que gaste o tempo a inventar, vamos lá começar pelo começo, para não quebrar a rotina.
Ao fim e ao cabo, tenho tanta coisa para fazer.

15 de março de 2021

O DESPERTAR DA ADOLESCÊNCIA

 

O despertar da adolescência leva-nos para um tempo novo!
A mim, a primavera da vida transformou tudo; subitamente um dia acordei e passei a ver tudo mais colorido, tudo mais leve; tudo com uns pós mágicos de felicidade. Também comecei a reparar "nelas" de outra maneira. A morena baixinha dos olhos negros e cabelo curtinho que ia sempre com a ruiva das tranças, das sardas e dos olhos da cor do mar no autocarro para o Campo Grande; a dos cabelos à Françoise Hardy que ia com os tios e os primos à Copacabana; a minha professora de História e Geografia do 5º ano; a elegante hospedeira da TAP do prédio em frente ao meu; a de franja risonha e vestido curto de malmequeres verdes que aparecera no grupo de férias em Sesimbra, no ano anterior; desfilavam nos meus sonhos com o meu subconsciente transformado em máquina de cinema e os meus olhos virados para dentro da cabeça, assistiam às sessões nocturnas que me agitavam o sono.
O tempo do céu permanentemente estrelado e da lua brilhante nas noites de fantasia depois dias dourados que passavam lentos demais ou apressados de menos, uma velocidade bipolar exasperante.
O tempo das palavras! Passei a escrever o que queria dizer, não a todas mas à que me fazia correr atrás do autocarro onde ela ia ou que me fazia esperar na esplanada e ficávamos a olhar um para o outro, sorrisos, isto e aquilo, começavam a chegar os outros todos, o grupo todo e lá se ia o tempo das palavras.
Restava-me esperar pelo tempo do sonho.
Fartava-me de incutir a mim mesmo a coragem para empurrar a decisão, chegava o momento certo, chegava ela e eis que já não achava que fosse o momento certo acabava a remorder palavras imprestáveis. Que merda! Porque tínhamos de ser nós, homens, a dizer que gostávamos delas, em primeiro lugar?
Tristão e Isolda, Romeu e Julieta, Pedro e Inês, Sansão e Dalila, Páris e Helena, Marco António e Cleópatra, Vadim Marslov e Mata Hari como foi que aconteceu? Ah já sei. eram outros tempos e nem tiveram de dizer nada antes de se beijarem. Pelo menos nos filmes era assim!
Até que um dia, tinham chegado as férias grandes quando fomos à matinée do Império ver o "Alamo", enquanto o David Crocket, de pé em cima do muro do forte meio desabado do forte ia despachando o exército de Sant' Anna, fez-se um clique qualquer no dramático momento do que se passava na tela e agarro-lhe a mão e um beijo que saíu meio na boca, meio desajeitado e ela virou a cabeça, vi-lhes os olhos a brilharem tanto que pareciam estrelas a sorrir a lua, apertou-me mais a mão, deitou a cabeça no meu ombro, eu ali cheio de palavras para lhe dizer mas não foi preciso. Afinal, era assim que tudo começava nos filmes...

12 de março de 2021

ERA UMA VEZ, UM DIA

 

Adormecemos num mundo e acordámos noutro;
num repente as ruas e as praças das cidades ficaram desertas
os jardins e os parques estavam ainda mais verdes e atraentes
mas ninguém andava nos caminhos ou descansava, ao Sol, nos bancos.
e aos domingos não se viam os piqueniques, nem namorados,
nem as crianças que costumavam saltitar como pequenos pássaros ,pela relva
o planeta, subitamente, pareceu ficar desabitado
ou desabituado de tudo o que era nosso;
abraços e beijos tornaram-se armas mortíferas
não visitar família e amigos passou a ser um acto de amor,
havia muitas mais pessoas doentes e muitas mais a adoecer nos hospitais
apesar do esforço do homem e da ciência
havia mais mortes, a cada hora que passava;
de repente ficámos a perceber
que poder e dinheiro passavam a valer menos, muito pouco, nada
e, não conseguiam substituir o oxigénio
que milhões de pessoas precisavam, desesperadamente,
para poderem continuar a viver.
Mas a Terra continuava a girar,
quem a visse do espaço, certamente vê-la-ia mais azul, mais bela
por ser o único lar que temos
e nós, os humanos enclausurados em vida,
deveríamos já ter percebido que se todos os restantes animais
mais as árvores e as flores, o mar e o ar, água e o céu,
vivem melhor assim, sem contar connosco, sem precisarem de nós
torna-se urgente
matarmos a nossa arrogância, deixarmos a nossa prepotência,
não nos julgarmos pela nossa imprescindibilidade egoísta
para quando chegar o momento de voltarmos a ser nós
que o sejamos como sempre deveríamos ter sido!