21 de março de 2016

(RE)AMANHECER


Um clarão explode a leste no cimo da encosta
desce entre pinheiros, gigantes vagabundos
numa sinfonia de sombras, de costa a costa,
até se espelhar na serenidade do rio, nas mimosas,
a incendiar as margens, numa desordem de ouro.



Corpos menos jovens por tantas primaveras gastas,
gestos mais lentos por tantas primaveras esquecidas.
Mas...amanhece o tempo da primeira vez, 
de quem não precisa de mais nada para se ter
no silêncio das palavras que já não é preciso dizer.


16 de março de 2016

UMA LEGENDA (talvez demasiado comprida) PARA A FOTO DO MEU "ALBÚM DE FALHAS DE MEMÓRIA"


Quando a encontrei em casa de minha mãe, há uns largos anos, a foto perdia-se no meio de muitas outras mas quando lha pedi para fazer uma cópia; qual cópia!? Levaria aquela do avô que eu mal recordava visto ter falecido, ainda eu não completara os cinco anos.
Portanto, aquela foto era a última que existia com o meu avô e os dois únicos netos. O João e eu. No verso, o local e a data, com a letra grande e trémula da minha avó, talvez escrita com aquelas canetas antigas,
um grande aparo de molhar num tinteiro daquele azul 'Quink'.

"Senhora do Monte da Graça", 18 de Março de 1953

Esteve, anos e anos, guardada no album de família, até que um dia, não posso precisar qual, encaixilhada, saltou para a prateleira mais alta, á frente dos seis volumes da obra completa de Vítor Hugo e assim ficou em lugar de destaque, apesar de todas as mudanças de casa, de novos arranjos decorativos, de diferente disposição dos móveis pelas salas, etc.

"Senhora do Monte da Graça", 18 de Março de 1953.

63 anos...Faltavam poucos dias para a Primavera quando a Primavera não falhava o equinócio como agora que se atrapalha em demasia nas voltas de um clima transtornado..
O meu avô Adriano já minado pela doença que lhe dizimou o pâncreas e outros órgãos vitais e acabou com as suas últimas forças, viria a morrer seis meses.
O meu primo João, mais velho do que eu 12 anos e uns meses, naquela pose de galã cinematográfico, no seu belo fato domingueiro e gravata às riscas nó aprumado, Eu, o puto, de pernas magricelas e olhar enrugado pelo Sol, na borda do banco com a mão protectora do avô Adriano.
Estar horas seguidas com ele a mostrar-me revistas de instrumentos musicais do negócio da Casa Valentim de Carvalho, cuja loja na Rua Nova do Almada, em Lisboa, ele esteve à frente durante várias décadas. e eu a ouvir as diferenças entre um piano e uma pianola ou porque grafonolas produziam música a partir duns discos grossos feitos de plástico e uns riscos onde uma agulha, semelhante à da máquina de costura da minha avó, encalhava e girava até acabar no centro..
E, o meu primo João, que foi aquele irmão que eu não tive e eu para ele também o irmão mais novo que ele não teve, nos jogos de futebol que fazíamos na marquise da casa com as balizas na porta da casa de banho e na porta da despensa, para desespero da minha mãe quando, ainda por cima, o meu pai fingia ser um árbitro de jogos que só por milagre não produziam estragos.
Ambos tiveram mortes prematuras e dolorosas que senti, claro, de maneira e intensidade diferentes.
 
Mas, hoje quando olho aquela foto 'à la minute' sinto que é uma daquelas que diz muito mais marca que o instantâneo em que um avô e dois netos se sentaram a desfrutar uma tarde de pré Primavera no miradouro da colina mais alta de Lisboa!
Ela é toda a história de todos os anos vividos que a minha memória não reteve mas pode imaginar como foram bons com aqueles dois excelentes companheiros.....