25 de janeiro de 2017

JÁ PASSA DO MEIO DIA...

Chegou à porta do quarto e bateu com os nós dos dedos na porta quase totalmente fechada. Nada! Voltou a bater, agora acompanhando o toque com o nome dele a saltar receoso dos seus lábios.
"São horas, filho! Olha que já passa do meio dia!"
Do quarto ainda envolto numa penumbra que o dia tinha atacado e ajudado a clarear ligeiramente, saiu um resmungo, seria mais um grunhido de alguém que não está disposto a ser importunado.
Não obstante, ela insistiu.
"São horas, filho! Olha que já passa do meio dia!"
Encostou o ouvido à porta e julgou identificar o ruído dos lençóis quando alguém se revolve e se revolta porque acha que o dia tem ainda muito tempo para ser dia.
"Ó mãe, caramba! Eu não te pedi para me acordares, pois não?"
A mãe hesitou a ensaiar uma última tentativa mas considerou que talvez fosse melhor não insistir, até porque de dentro do quarto ouviu a voz a engrossar.
"Deixem-me em paz! É sempre a mesma coisa. Eu quando quiser eu levanto-me.....percebes ou não?"
Ela deu meia volta e enquanto seguia pelo corredor na direcção da cozinha onde o almoço fumegava, a castigar-se intimamente por não ter tido a força suficiente e as palavras pareciam sair da sua cabeça, num murmúrio.
"São horas, filho! Olha que já passa do meio dia"
A geração 'NEM NEM formada por centenas de jovens que nem estudam nem trabalham e que, um dia, ainda ouviremos culpar pais e avós por não os terem tirado da cama, porque já passava do meio dia,.....

24 de janeiro de 2017

ESPERA MAIS UM POUCO....


ACORDAVA SEMPRE MUITO CEDO Demasiado cedo.
Era normal a casa ainda dormir num silêncio profundo
apesar dos raios de Sol empurrarem as portadas da janela.
Ficava, então muito quieta, naquela apatia de enganar o dia
sem vontade de sair do lençol morno enrolado ao corpo
sem vontade de tirar a cabeça da almofada dos sonhos.

Todas as noites, antes de adormecer, ia amontoando dias
um passado feito mais de incertezas e de muito poucas alegrias
e então questionava-se sobre a moral e a justiça da vida. 
Enquanto que para uns, a felicidade parecia estar à porta
para outros, para ela também, um caminho tortuoso e difícil, 
sem abrigos nem descansos desgastava-lhe a vontade de ser.

Talvez, por isso, o sono fosse encurtado num sobressalto
muitas vezes assaltado por um pesadelo cruel.
Certamente, por isso, ela desejava esperar mais um pouco
muito quieta, escutando o silêncio sombrio da casa
esquivando-se aos raios de Sol que anunciavam o dia,
sem vontade de sair do lençol morno enrolado ao corpo
sem vontade de tirar a cabeça da almofada dos sonhos.

E ficava acordada! Fechava os olhos e ficava acordada, 
fingindo dormir, só para enganar o seu inconsciente,
para poder ser ela a comandar um sonho 
onde coubesse um futuro com a felicidade sempre à porta!


23 de janeiro de 2017

O MENINO QUE NASCEU CEGO

O seu mundo particular tinha-o construído, momento a momento,
sempre que os outros órgãos sãos lhe permitiam associar 
todas as sensações da sua retina branca.
Uma voz conhecida, outra desconhecida, a música que gostava de ouvir,
o canário que cantava tanto na gaiola da sala, 
um simples ruído que se habituara a sentir,
sons tão diferentes que relacionava com objecto ou acção. 
Quando os seus dedos tacteavam corpos e rostos, 
num tremular de ansiosa adivinhação 
ou abraçava objectos para lhes descobrir as formas e as texturas.
Mas também tudo o que lhe descreviam e 
armazenava num imaginário de cores e formas.
A praia de areia dourada sob o intensamente amarelo do Sol, 
o céu azul a reflectir ondas brancas de espuma, nuvens revoltas, 
as árvores de copas verdes e a relva macia a atapetar o chão
e, nas noites estreladas num mar de cintilações 
iluminadas pelo néon da Lua com os desenhos das sombras 
Todas as coisas que se esforçava por captar 
num esforço que os seus olhos nunca poderiam ser. 

Num fim de tarde, em que dava o seu habitual passeio com o pai, 
pela muralha que ladeava o porto de pesca
e ia descrevendo tudo o que não podia ver, 
o pai nunca deixava de ficar fascinado 
ao confrontar o filho com o seu mundo interior, imaginado. 
Foi então que, a dada altura, ao sentir a amena brisa 
que àquela hora sempre se levantava, 
ele estacou, de repente e perguntou:
- Pai, diz-me. Que cor tem este vento?

20 de janeiro de 2017

O MENINO QUE SONHAVA A CORES

QUANDO SE DEITAVA e a mãe lhe vinha aconchegar a roupa
fazer aquele gesto, ao longo dele, como se lhe moldasse o corpo
deixar-lhe o suave toque dos lábios na sua testa
num doce afago, passar-lhe os dedos pelos cabelos,
num sussurro delicado dizer-lhe - dorme bem, meu querido,
o menino suspirava um longo sorriso e, mal adormecia,
sonhava a cores.
E, eram sempre tão lindos os sonhos que ele via 
por um caleidoscópio de cores suaves a cheirarem a primavera
E desejava tanto que a sua mãe entrasse também para o sonho
lhe aconchegasse a roupa e fizesse tudo o que costumava fazer 
para ele poder continuar a sonhar...sempre....sempre....

18 de janeiro de 2017

HÁ HORAS DE SORTE...

HÁ HORAS DE SORTE...
JOSÉ AÇO, EMPREGADO DE MESA num café da baixa portuense foi o primeiro apostador do totobola a ganhar mais de dois milhões de escudos (2.000 contos ou 10.000 euros) graças ao sensacional palpite da filha com nove anos de idade. Foi há 52 anos ( a 18 de Janeiro de 1965). A notícia veio no Diário Popular e apesar de em 1965 dois mil contos ser quantia milionário, reza a notícia que o senhor continuou a atender às mesas, todos os dias, os clientes do café onde estava empregado há mais de dez anos.
Há horas de sorte!


ADRIANO, MEU AVÔ MATERNO que foi responsável pela loja de Valentim de Carvalho na rua Nova do Almada, era também ( dizia a minha avó ) afinador de pianos e entendido em transacções de instrumentos musicais, ainda eu não era nascido.
Uma manhã de primavera, a velhota de lenço minhoto na cabeça e aspecto modesto abordou o meu avô, quando este abria a loja. vendia lotaria. Na mão direita uma tosca bengala ajudava a perna frágil e cansada enquanto na outra mão exibia harmónios de uns bilhetes da lotaria.

"O senhor aproveite este Sol e ilumine a sua vida. tem aqui este terminado em 3 que é a conta que Deus fez...
O meu avô achou graça ao jeito dela e acabou por lhe comprar uma cautela do tal número que terminava em 3. Na sexta feira andou á roda mas o meu avô nunca mais se lembrou da cautela mas na segunda feira seguinte, ao abrir da loja, o meu avô viu a velhota 'cauteleira' subir vagarosa e esforçadamente o início da rua. Esperou à porta da loja e quando ela chegou:
"Bom dia minha senhora! Lembra-se de mim?"
"Então não me lembro! Eu não lhe dizia que ia ter um raiozinho de Sol na sua vida?"
"Ai sim? Então diga lá!"
"Então o senhor não viu? Teve prémio. 10 vezes o que pagou"
"Oh, oh, oh, não me diga. Ainda aqui tenho no bolso a cautela Como é que vamos fazer isto?"
"Se quiser o prémio vai ao Rossio que eu não ando com tanto dinheiro para destrocar mas se quiser.... compra-me o bilhete e fica tudo pago"

O meu avô hesitou, enquanto a velhota se encostava à parede com os olhos brilhantes a assomarem por baixo do bico do lenço.
"Está bem! Ficamos assim... a partir de hoje jogo sempre com esse número todas as semanas, pode ser."
"Se pode! Uma boa escolha, cavalheiro e muito agradecida.."
"Espero que tenha sorte...".
"Dito e feito, meu caro senhor.... aqui o tem!"
"Como se chama, a senhora. Eu chamo-me Adriano Rodrigues e estou sempre aqui na loja. Se alguma vez tiver de me ausentar deixo alguém com o dinheiro e a quem pode confiar as cautelas".
"Sou a Etelvina, meu bom senhor e que a sorte vire os olhos para o seu lado e ilumine a sua vida".

Passou um ano. Passaram dois anos. Etelvina passava sempre pela loja, segundas de manhã, deixava o bilhete com o número da sorte e o meu avô lá ia, de quando em vez, tendo uns raiozinhos de Sol para dividir em prendas com a minha avó, a minha mãe e os meus tios. Nunca ganhou nada demais. Mas, como ele dizia, lá ia dando para uma passeata, num qualquer domingo em que iam de charrete almoçar, fora de portas, ali para os lados do Campo Grande e passar a tarde a respirar o ar puro do campo.
O inverno tinha começado há uma semana e tinha vindo muito frio e molhado quando numa manhã de segunda feira, já passava das onze, um rapaz de fato gasto e acanhado e molhado da cabeça aos pés entrou na loja e dirigiu-se ao meu avô:
"Bom dia. É o senhor Adriano?"
"Sim sou eu."
"Eu sou o Álvaro, sobrinho da Etelvina da lotaria..."
"AH! Estava á espera da sua tia, mas não apareceu até agora e.."
"Pois. A coitada está com a pneumonia. Passou a noite muito mal e pediu-me para lhe trazer as cautelas..."
"Coitada. Então deixe lá ver que eu lhe pago,..."

O rapaz tirou de um saco de pano grosso, uma série de cautelas, meio molhadas e mostrou-as, mas o bilhete reservado, estava já quase todo vendido e só restavam quatro cautelas. 
O meu avô desencantado.

"Então a sua tia não lhe disse nada?"
"É que, pois, não me lembro se....talvez..."
"Bem, bem! Já vi que temos confusão. Mas, pronto. O que não te remédio.....olhe fico com o que resta".
"Obrigado, senhor e desculpe. Não me lembrei de separar..."
"Pronto, pronto. Não seja por isso. Vá lá à sua vida. E as melhoras da sua tia coitada. O pior mal é o dela. Vá lá!"

Na sexta feira andou à roda como sempre. O número do bilhete que o meu avô costumava comprar inteiro, teve o primeiro prémio. A sorte grande. O meu avô teria ficado milionário. Assim teve os raios de Sol que o sobrinho não tivera tempo de vender.