23 de novembro de 2021

TRAIÇÕES DA MEMÓRIA

 

Cada vez te demoras mais.
Já nem sei se vens..
E eu sem conseguir adormecer.
Chego a pensar que te perdes na escuridão do jardim, no silêncio da casa, no frio do quarto, no vazio da cama.
Talvez seja melhor procurar a tua presença a preto e branco, na moldura ao pé do candeeiro em cima da cómoda, daquela vez que fomos os dois à praia e eu insisti para subires a escada de madeira e eu cá em baixo, joelho na areia, num equilíbrio forçado a focar o vestido de alcinhas e ramagens, a focar o teu corpo na contra luz.
Talvez seja melhor procurar a tua presença naquela canção francesa que tu costumavas cantarolar baixinho no meu ouvido como se fosse um segredo e que terminava comigo a sentir os teus lábios quentes a apertarem o lóbulo da minha orelha direita.
Não vais mesmo aparecer!
E, eu não vou conseguir adormecer.
Embora saiba que é inútil procurar-te no vazio da cama, no frio do quarto, no silêncio da casa, na escuridão do jardim, na moldura da foto a preto e branco, na tal canção francesa.
Afinal, na minha memória és já uma névoa...

3 de novembro de 2021

APENAS O TEMPO "Only Time"


Quem pode decidir o rumo a tomar
nos dias que vão?
Apenas o tempo
Quem sabe se esta forma de amar
abrirá um coração?
Apenas o tempo
Quem pode estar perto dum suspiro
se o amor não se sente?
Apenas o tempo
Quem diz se é por ti que respiro
se o coração mente?
Apenas o tempo.
Quem pode fazer o mesmo caminho
quem pode amar sem carinho
e enganar a solidão?
Quem assegura quando o dia anoitece
que o amor não se esquece
de abraçar o coração?
Quem sabe?
Apenas o tempo...




 

12 de setembro de 2021

TANTA URGÊNCIA

 

Tanta urgência
em gastar a vida
sem clemência
vorazmente engolida
numa impaciência
sem saída.
Ainda que o espaço pareça apertado
Ter sempre uma janela aberta
para o que vale a pena
é dar tempo à vida.

5 de setembro de 2021

CAFÉ DA MANHÃ DE DOMINGO

 

Ao acordar, permaneceu deitada, imóvel.
na falsa sensação de que tudo em volta ficaria,
exactamente, como no instante anterior.
E, nessa ilusão, pôde descansar, um pouco mais
na penumbra dos sonhos
ao longe, vinda da cozinha
"Is this love?" a sonoridade dos Whitesnake,
até que ouviu os passos dele, nos degraus
antecipou a sua entrada no quarto
bandeja pousada nas mãos, equilibrando um sorriso
a chávena de café fumegante acabado de fazer
a torrada cuidadosamente barrada num prato
o triângulo branco do guardanapo, ao lado
e a pequena jarra de vidro de cores diversas
com o girassol espetado.
Bom dia, "sheka"!

27 de agosto de 2021

NÃO. NÃO É INSÓNIA.

 

Não. Não é insónia.
Insónia é quando queremos dormir e não conseguimos.
Aqui, deitado de barriga para o ar, nesta cama estreita
sou eu mesmo que não adormeço porque não quero.
Não antes de preparar o terreno dos sonhos.
para já finjo que durmo mas não durmo.
Deito-me, simplesmente.
Fecho os olhos. Deixo o silêncio invadir o escuro à minha volta.
Anos atrás punha-me a ler um livro qualquer e adormecia.
Agora que ando a comprar menos livros,
e a escrever mais nos meus, em vez de ler,
ponho-me a segredar uma história a mim mesmo.
Assim algo que gostasse que acontecesse, coisa boa, já agora,
pode ser a mim, pode ser a alguém que conheça,
pode ser até a um outro qualquer que invento logo ali
no interior da minha cabeça,
no escuro da minha imaginação
uma história que começo a contar a mim mesmo.
uma história que sou eu que faço e me agrada
apesar de ter de fingir que não sei o fim
para não tirar o interesse que as histórias de vida têm.
porque é uma história de vida e nas histórias de vida,
raramente se sabe o fim!
Projectos, planos, momentos colados uns aos outros
É uma boa altura. Está tudo tão sossegado, tão quieto.
que até sou capaz de ouvir a minha imaginação a trabalhar.
Já alguma vez ouviram a vossa imaginação?
Às vezes até nos dói. Como somos capazes de imaginar tanta coisa?
- e então adormeço -
sem imaginação para mais? Também cansa.
Mais tarde tenciono acordar
-ainda bem que tenciono acordar-
e, embora nem pense mais no que pensei antes de adormecer
sinto-me feliz, sobretudo, por acordar para a vida real,
para a vida acordada que, no entanto, tem tantas vidas inventadas.

21 de julho de 2021

AMIZADE É UM AMOR QUE NUNCA MORRE

A data foi escolhida em 1969, ano da chegada do homem à Lua com a carga simbólica de mostrar a união dos homens para alcançar objetivos.

“A verdadeira amizade é a que nos permite dizer ao amigo, todos os seus defeitos e todas as qualidades sem que isso seja ofensivo ou motivo de ciúme e mostrar discordância mas também apoiar. Só se for aberta e franca pode ser relação de verdadeira amizade.
E, quando de amizade e de amigos se fala não se consegue evitar de pensar em família, pois seria suposto que entre familiares estivessem os nossos melhores amigos como os maiores gestos de amizade.
Mas, não é assim embora também seja assim!
Para que possa haver amizade tem de haver compreensão, respeito, dignidade, tolerância, entendimento, tem de haver "luas onde todos possam chegar" com a vontade de cada um, para que todos lá cheguem, como define Mário Quintana "amizade é o amor que nunca morre.
Talvez por isso, seja difícil encontrar famílias perfeitas assim como é tão difícil encontrar verdadeiros amigos.
A amizade, essa tem de ser perfeita, senão não será amizade!
Faço este paralelo porque, valorizo tanto a amizade que se não souber promover "esse amor que nunca morre" no seio da minha família esta verdade sobre a amizade transforma-se numa outra verdade como diz Pessoa "Família não é um conjunto de parentes. Mais do que afinidade de sangue, tem de ser afinidade de temperamento!
Todas as famílias felizes se parecem umas com as outras; cada família infeliz é infeliz à sua maneira. (Liev Tolstoi, in "Anna Karenina")
FAMILIA É O QUE FOR
Berço de aconchegos a que se volta ao fim do dia.
asa grande e protetora, uma mão sempre estendida.
amizade que embala a vida. à chegada e na partida.
corações em sincronia na tristeza e na alegria.
união nas horas más e nas boas, repartir.
porque onde se está bem, não se tem porque partir.
Família pode ser assim mas, afinal é o que é,
porque não se escolhe, sem tirar nem por.
Família é o que for.

22 de junho de 2021

VERÃO

 

Há tanta coisa linda p'ra sentir neste azul dourado
que não sei se sonho, acordado
se continuo a sonhar o sonho das noites longas

Nasce o Sol por cima do monte
e a vida nasce com ele. sinfonia de cores e sons
um quadro de fantasia. harmonia
pelo dia que escorre
lá no alto de tudo, mais alto que nunca aquece-nos a alma.
Entardece tarde o dia
que incendeia o azul, na linha do horizonte,
e a noite de lua cheia brilhante
num escuro cintilante
vê-se no espelho de prata, nas águas e nas sombras.

As palavras sabem a amor, numa paz amena
e nos meus lábios, o gosto do teu beijo salgado.
Pelo teu corpo anda o perfume da alfazema.









21 de junho de 2021

ANUNCIA-SE O VERÃO


Adormecer na Primavera e amanhecer no Verão e saber tudo a Inverno.

O solstício foi às quatro e trinta e um da madrugada - chovia a potes - e até quarta feira estamos nisto. Convencido da inevitabilidade do desaforo dos deuses e da desordem dos elementos, há muito que deixei de me surpreender com estes falhanços da ordem natural das coisas que será mera ilusão de um caos disfarçado que sempre existiu e que nós, pobres humanos, tentamos ordenar algumas vezes mas, sempre com a nossa arrogante inteligência, outras vezes aceleramos ainda mais contribuindo para que a natureza ainda fique mais desarrumada.
O Verão chegará, que ninguém duvide!
Ainda a tempo e, sem surpresa, se ouvirá muita gente - uuuuuuuufffff!!!! isto é calor a mais!!! quem me dera uma chuvinha para nos livrar desta seca - ansiar que um pequeno caos venha amenizar a ordem natural das coisas.

20 de junho de 2021

A PASSAGEM

 


 

Quando a porta está aberta vejo o lado de lá.

Parede branca, no lado esquerdo, um poema escrito na parede como tela em moldura invisível, encimando um armário em metal cinzento com uma pilha de pastas de cartolina, em cima, cuja função ou proveniência não consigo identificar.

O rodapé é de mosaico com os mesmos motivos dos mosaicos do chão, pintalgados, a preto e branco. Tudo no outro lado parece a preto e branco como numa foto já longínqua ou talvez recente mas como se artista tivesse preferido um "flash" mais monocromático.

Quando a porta está fechada vejo apenas o lado de cá.

E a porta, claro!

Do lado de cá, por cima da porta, há uma fileira de quatro leds e logo acima desta, um dístico verde com um boneco branco a correr para uma escada indicando uma saída em caso de emergência.

Emergência!

É por isso que a porta tem a meio uma barra metálica que serve para que se abra rapidamente "para fora". Mas, não é verdade que haja portas que abram para fora. As portas abrem todas para um lado. Não abrem para fora pois quando abrem para fora, abrem também para dentro de outro lado. Abrem para fora porque as empurramos mas, do outro lado abrem para dentro porque as puxamos.

Hoje, alguém deixou um chapéu de chuva encostado à parede do lado de cá, junto à ombreira do lado direito. O dia tem estado irregular pois amanheceu com Sol mas, já ao início da tarde, o céu escureceu, entristecendo o cenário lá fora.

Terá sido alguma corrente de ar que fez bater a porta, fechando-a num estrondo? Não sei! 

Mas sei que as portas fechadas, como não deixam ver o outro lado isolam a nossa visão, mas dão-nos asas à nossa imaginação e é como se ficássemos com olhos virados para dentro da cabeça. Os nossos sonhos tão infinitamente libertários não têm portas que os encerrem.

 

Mário Jorge, in "Projecto Livros XXI

 

28 de maio de 2021

ESTADO DE EMERGÊNCIA

 

Abro a janela do quarto, no silêncio
das ruas e das praças desertas
da minha cidade abandonada
cheia de pessoas por dentro!
Será que alguém ainda se lembra
para que lado está o futuro?
Será que ainda temos tempo para voltar
ainda temos forças para amar?
Deixo a janela aberta, respiro
fatia de Sol num chão de sombras
enquanto o silêncio vai envolvendo
o cenário, despido de esperança;
e, depois, só resto eu (à janela)
e a natureza que não se fecha!
(MJS, Eu e os meus fantasmas, 2020/04)

24 de maio de 2021

UMA POR TODAS E TODAS POR UMA

 

É com enorme gosto que assim presto a minha homenagem às quatro heroínas,
com este soneto "UMA POR TODAS E TODAS POR UMA
Uma por todas e todas por uma
Como quatro “mosqueteiras”
São peregrinas, companheiras
Ao vento, à chuva, pela bruma
Assim vão indomáveis, sem barreiras
Juntas p’la vontade que as apruma
Na força de querer e mais nenhuma
Ultrapassam fadigas e canseiras
Já ao longe, ecos de música celestial
Em Compostela, de paz e de bonança
Onde Santiago deixou nome e um sinal
Fim do caminho, não d’ esperança,
É no silêncio quieto da vetusta catedral
Que unem votos já de feliz lembrança.


8 de maio de 2021

MÃE

 

MÃE
quando me pariste num esforço de amor,
me abrigaste no teu peito inquieto
e protegeste com o teu braço de afecto,
era pequeno grito ensanguentado de dor
esbracejando de medo no mundo incerto.
Agora que gastámos décadas de vida
quem me dera cambalear insegurança
matar esta saudade, não sendo criança,
poder ter o teu colo como guarida
ver no teu olhar o sorriso de esperança.

28 de abril de 2021

O FUTURO É PASSADO NO PRESENTE

 

"Vivo sempre no presente. O passado já não o tenho. O futuro não o conheço" (Fernando Pessoa)
A ideia que temos do passado é de um tempo que não está ao nosso alcance modificar. Resta-nos revisitá-lo através da memória, revendo-o e modificá-lo, no presente, caso não se queira repetir.
Então o passado tem uma vantagem.
Se errámos e não queremos voltar a cometer o mesmo erro, temos de evitar fazer o mesmo, de novo. É no presente que o passado se altera embora sem o modificar porque já aconteceu.
Adivinhar o futuro é simplesmente, ter a ideia de tudo aquilo que precisamos fazer para que ele se cumpra como desejamos.
Porque não se podendo alterar o que ainda não aconteceu, o futuro será sempre o que fizer agora. O futuro vivido no presente, não por antecipação, mas porque temos de saber o que fazer a seguir. Não se adivinha. Faz-se!
Mas, o futuro tem um problema.
De cada vez que o fazemos ele altera-se e depois tudo muda com ele!
É no presente que tudo se decide e se vive, pois se viver no passado é tempo perdido, viver no futuro é um sonho porque na realidade só o vivemos quando ele se torna presente.


26 de abril de 2021

A PRPÓSITO DE TUDO E MAIS ALGUMA COISA

Apanhei-me a saltar de pedra em pedra, tentando evitar escorregar e naufragar nas águas agitadas do meu pensamento líquido.

"Viver é um rasgar-se e remendar-se"
(Guimarães Rosa)
Quantas vezes se ouve dizer: "Eu não tive escolha possível". Provavelmente, quem assim o diz, terá rejeitado outras até que ficou com a que escolheu. A nossa vida é feita de muitas escolhas. E, se é facto que escolhemos, então é porque temos várias.
Não ter escolha é dizermos "eu escolhi!"
Levei tantos anos para conseguir gostar de mim que fiquei sem tempo para te ensinar a gostares de mim, também. Não me revolto nem me penalizo. Talvez um dia saibas que para gostares de mim terias de me ter visto com outros olhos, mas não com os olhos dos outros. Mas, não te critico. Ao fim e ao cabo, escolheste o mesmo que eu, durante anos!
Ver-me pelos olhos dos outros!
- "Quem está nas trincheiras ao teu lado?"
- "E, isso interessa?"
- Mais do que a própria guerra!"
(Ernest Hemingway)
A vida pode ser uma guerra; ao acordarmos, temos uma batalha para ganhar (ou não). Quantos de nós temos de enfrentar sós? Quantas vezes? Dizemos: "Esta guerra é minha!". Quantas vezes nos vemos envolvidos noutras guerras? Dizemos: "Não devia ter-me metido nisto! Esta nem é a minha guerra".
Mas, nas trincheiras da vida, o que mais custa é perceber que ao nosso lado está alguém que nos abandona... a meio da batalha!
As escolhas, na guerra e na paz, somos nós que as fazemos. Na paz podemos escolher a guerra e vice versa, porque há quem não sabendo viver em paz só tem paz, escolhendo a guerra.

LOLA

 

Vem aí tempestade, Lola, "a furibunda",
selvagem, indomável, fêmea à desgarrada
soprando águas e granizo, tudo inunda
dos elementos na natureza martirizada.
Lá do alto, desce a diaba vagabunda,
rodopia ventos, numa fúria apressada
levanta lamas, numa nudez imunda
ante impotentes defesas desgastadas.
Nos mares verdes, morre uma esperança
no céu troveja a voz duma bombarda
cheira a catástrofe na voz da lembrança.
A primavera interrompe-se, mas aguarda
que passada tempestade, numa bonança
regresse Sol e brilho, uma nova alvorada

19 de abril de 2021

ABRINDO O DIA

 

Começar o dia com uma frase motivadora é mais fácil quando está Sol apesar de parecer paradoxo pois quando está Sol já o dia parece ser motivador o suficiente.
Eu também acho que sim.
Hoje está Sol, como previsto. Urgente acordar. Sufoco o grito de terror pelo gajo que passa no espelho do lavatório, a olhar-me de lado, a caminho da sanita numa pressa de próstata já com muitos anos de esforço, o xixi, a chapinhação do bocejo enrugado e dos olhos ainda meio desaparecidos por detrás dos papos e só depois continuo em direcção à cena do café com leite e torradas com manteiga, compota, ao som da M80 e das melodias dos anos de ouro (pelo menos dos meus) e do comprimido para manter a tensão arterial mais normal porque isto de se ser hipertenso não é lá grande coisa e como já tenho um aneurisma sob vigilância, não vá o cano rebentar num excesso qualquer e zás é um fósforo enquanto um gajo bate as botas, ou se fosse agora batia mais os chinelos de quarto... bem, mas isto agora não interessa nada. Venha lá a frase motivadora, mas é!
"Não espere pelo momento perfeito porque não existe. Agarre já este E FAÇA-O PERFEITO!"

AO CAIR DO PANO

 

Amanhã abre um "novo normal" em mais uma tentativa para voltarmos,
num esforço de fingir que está tudo bem,
a fazer quase o que fazíamos antes de estarmos proibidos de fazer.
Por isso, lembrei-me de coleccionar alguns pensamentos dispersos para reflectir
antes de me lançar nesta liberdade comedida, não desmedida!
As pessoas mais felizes não têm o melhor de tudo
mas fazem o melhor com tudo o que têm.
Se não puder fazer tudo, faça tudo o que puder.
A vida é curta. Quebre as regras.
Perdoe rápido. Beije lentamente. Ame intensamente.
O que não nos desafia, não nos transforma.
Loucura é querer resultados diferentes
fazendo tudo igual ao que foi feito.
Acredito na energia das pessoas.
Há pessoas que nos sugam. Outras que nos iluminam.
As pessoas que valem a pena são as que nos fazem sorrir
quando nos lembramos delas.
E, saiba... às vezes é preciso sair errado
para depois sair triunfalmente certo!

ESTAR CONTIGO

 

Estar contigo nunca foi uma opção mas sim um privilégio
e quem não sentiu isso, lamento porque não sabe o que perdeu!
Por isso, invento asas para voar neste desejo de estar ao pé de ti.
Mesmo que seja só na minha imaginação.

1 de abril de 2021

AQUELE VERÃO

 

Tudo me fazia recordar aquele Verão escaldante
os fins de tarde, com a planície quieta e imensa
ali, à nossa frente, ao alcance da mão
aquela paz de catedral vazia, sem tecto,
apenas os murmúrios longínquos da natureza
e nós, debaixo do alpendre, mãos dadas,
a tua cabeça no meu ombro, sorriso tranquilo
a olharmos um sol incendiado, a cair ao longe,
por detrás de um grupo de oliveiras.
Então,
a noite chegava pejada de pontos brilhantes,
uma lua madrugada dentro, empurrada pela brisa,
entrar no quarto num relâmpago de prata
para iluminar o nosso momento de amor.

SAUDADE

 Saudade

essa espécie de máquina do tempo
que habita em cada um de nós
e nos traz de volta, os momentos que valeram a pena.
povoada pelos momentos inesquecíveis
preenchida pelos paraísos nas nossas vidas,
esses passados bem sucedidos.

Saudade
a ausência do que já nunca mais pode ser
do que se deixa para trás, do que nunca foi.
quando olhamos as fotos dos momentos felizes
e das que não temos porque não tirámos
e, simplesmente, os vivemos.

Ninguém pode ter saudade do que lhe causou dor.
Ninguém pode ter saudade se não houve amor.

24 de março de 2021

SOMOS MUITO, ASSIM

 

Somos muito, assim.
Nunca sabemos o verdadeiro valor de algo que acontece, que vivemos num dado momento, até que se transforme numa memória, longínqua.
Um dia, ao revivê-lo manchado pela saudade, percebemos que ele foi tão sublime e afinal passou-se como se não estivéssemos estado.
Somos muito, assim.
A nossa memória sendo tão imperfeita não nos permite recordar aquilo que não fizemos, não vivemos, como dizia Pessoa, é justamente do que não fizemos, não vivemos de que temos mais saudades.
Somos muito, assim.
Seres paradoxais servidos por memórias selectivas, punitivas, raramente purificadoras. Somos, então, maioritariamente apaixonados pelo futuro, perdulários do presente, saudosos do passado.
Nesta atrapalhação que nos faz pensar hoje aquilo que fizemos ontem e que tencionamos fazer amanhã, vivemos um presente matizado por memórias, acontecimentos e projectos. Um presente demasiado para que possamos olhá-lo com a atenção que merece.
Somos muito, assim.

O QUE EU NÃO QUERO

 

Não quero sonhar campos verdes, por baixo de céus azuis
nem manchas de girassóis, sempre à procura do amarelo solar
nem casas de telhados verticais a escorrerem pelas encostas
nem despertares de luz a trespassar vidraças adormecidas
nem crepúsculos de sóis em fogo na linha do horizonte
nem luas de prata a sorrirem estrelas cintilantes no céu
nem rios inquietos que se afogam em mares sem fim.
Sonhos para serem mesmo sonhos devem ter impossibilidades,
devaneios loucos, inconscientes, mas libertadores como aves
bandos pelos ares, um súbito e multicolor bater de asas,
numa vertigem de encantamento, um sopro da invulgaridade.

ABRIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIINDO

 

Há dias em que acordo com vontade de fazer imensas coisas embora, por vezes, não saiba bem quais.
Vou até à janela, afastar o cortinado sonolento, espreitar a rua, o movimento ainda é escasso, os carros continuam tranquilos na borda dos passeios, a paragem do autocarro só tem duas pessoas mascaradas separadas pela distância do medo, o café defronte ainda não abriu nem vai abrir ainda e só a florista tem estado aberta porque, justifica quem decide estas coisas, que flor é delicadeza tão caprichosa e tão frágil quanto o amor e murcha se não for regada todos os dias.
O quarto de banho aguarda-me para a primeira incursão, verter águas, enfrentar o espelho do lavatório, arregalar os olhos perante o eu, tão horrível que nem o sorriso de bom dia anula os papos dos olhos e a vontade imensa de lhe deitar a língua de fora.
A barba por desfazer e o duche para animar o esqueleto e limpar as poeiras da noite vão ter que esperar o tempo do pequeno almoço, de cafeteira do café ao lume, três fatias de pão de forma a ganharem cor na torradeira, a compota de frutos vermelhos e o queijo gouda fatiado a espera mas, antes de tudo, o copo de água, em jejum, com um comprimido, para a tensão se manter mais ou menos e uma cápsula para a próstata não incomodar a bexiga, com a mania das grandezas.
Tantas coisas por fazer mas que não contam como coisas por fazer porque fazem parte destes meus acordares diários e até sem a novidade do inesperado e o incentivo do novo
Mas, como acordei, e antes que gaste o tempo a inventar, vamos lá começar pelo começo, para não quebrar a rotina.
Ao fim e ao cabo, tenho tanta coisa para fazer.

15 de março de 2021

O DESPERTAR DA ADOLESCÊNCIA

 

O despertar da adolescência leva-nos para um tempo novo!
A mim, a primavera da vida transformou tudo; subitamente um dia acordei e passei a ver tudo mais colorido, tudo mais leve; tudo com uns pós mágicos de felicidade. Também comecei a reparar "nelas" de outra maneira. A morena baixinha dos olhos negros e cabelo curtinho que ia sempre com a ruiva das tranças, das sardas e dos olhos da cor do mar no autocarro para o Campo Grande; a dos cabelos à Françoise Hardy que ia com os tios e os primos à Copacabana; a minha professora de História e Geografia do 5º ano; a elegante hospedeira da TAP do prédio em frente ao meu; a de franja risonha e vestido curto de malmequeres verdes que aparecera no grupo de férias em Sesimbra, no ano anterior; desfilavam nos meus sonhos com o meu subconsciente transformado em máquina de cinema e os meus olhos virados para dentro da cabeça, assistiam às sessões nocturnas que me agitavam o sono.
O tempo do céu permanentemente estrelado e da lua brilhante nas noites de fantasia depois dias dourados que passavam lentos demais ou apressados de menos, uma velocidade bipolar exasperante.
O tempo das palavras! Passei a escrever o que queria dizer, não a todas mas à que me fazia correr atrás do autocarro onde ela ia ou que me fazia esperar na esplanada e ficávamos a olhar um para o outro, sorrisos, isto e aquilo, começavam a chegar os outros todos, o grupo todo e lá se ia o tempo das palavras.
Restava-me esperar pelo tempo do sonho.
Fartava-me de incutir a mim mesmo a coragem para empurrar a decisão, chegava o momento certo, chegava ela e eis que já não achava que fosse o momento certo acabava a remorder palavras imprestáveis. Que merda! Porque tínhamos de ser nós, homens, a dizer que gostávamos delas, em primeiro lugar?
Tristão e Isolda, Romeu e Julieta, Pedro e Inês, Sansão e Dalila, Páris e Helena, Marco António e Cleópatra, Vadim Marslov e Mata Hari como foi que aconteceu? Ah já sei. eram outros tempos e nem tiveram de dizer nada antes de se beijarem. Pelo menos nos filmes era assim!
Até que um dia, tinham chegado as férias grandes quando fomos à matinée do Império ver o "Alamo", enquanto o David Crocket, de pé em cima do muro do forte meio desabado do forte ia despachando o exército de Sant' Anna, fez-se um clique qualquer no dramático momento do que se passava na tela e agarro-lhe a mão e um beijo que saíu meio na boca, meio desajeitado e ela virou a cabeça, vi-lhes os olhos a brilharem tanto que pareciam estrelas a sorrir a lua, apertou-me mais a mão, deitou a cabeça no meu ombro, eu ali cheio de palavras para lhe dizer mas não foi preciso. Afinal, era assim que tudo começava nos filmes...

12 de março de 2021

ERA UMA VEZ, UM DIA

 

Adormecemos num mundo e acordámos noutro;
num repente as ruas e as praças das cidades ficaram desertas
os jardins e os parques estavam ainda mais verdes e atraentes
mas ninguém andava nos caminhos ou descansava, ao Sol, nos bancos.
e aos domingos não se viam os piqueniques, nem namorados,
nem as crianças que costumavam saltitar como pequenos pássaros ,pela relva
o planeta, subitamente, pareceu ficar desabitado
ou desabituado de tudo o que era nosso;
abraços e beijos tornaram-se armas mortíferas
não visitar família e amigos passou a ser um acto de amor,
havia muitas mais pessoas doentes e muitas mais a adoecer nos hospitais
apesar do esforço do homem e da ciência
havia mais mortes, a cada hora que passava;
de repente ficámos a perceber
que poder e dinheiro passavam a valer menos, muito pouco, nada
e, não conseguiam substituir o oxigénio
que milhões de pessoas precisavam, desesperadamente,
para poderem continuar a viver.
Mas a Terra continuava a girar,
quem a visse do espaço, certamente vê-la-ia mais azul, mais bela
por ser o único lar que temos
e nós, os humanos enclausurados em vida,
deveríamos já ter percebido que se todos os restantes animais
mais as árvores e as flores, o mar e o ar, água e o céu,
vivem melhor assim, sem contar connosco, sem precisarem de nós
torna-se urgente
matarmos a nossa arrogância, deixarmos a nossa prepotência,
não nos julgarmos pela nossa imprescindibilidade egoísta
para quando chegar o momento de voltarmos a ser nós
que o sejamos como sempre deveríamos ter sido!

27 de fevereiro de 2021

 SÁBADO, 27 DE FEVEREIRO DE 2021 - 360º dia da pandemia

OU SEGUNDO DIA DO PENÚLTIMO MÊS A CONTAR DO FIM
Que maneira de dizer o dia não é!? Talvez. Claro que podemos dizê-lo de muitas outras formas, tantas quanto a nossa imaginação o permita.
O calendário do tempo, dividido em anos, meses, dias, horas, minutos, segundos, nos seus múltiplos e instantâneos momentos, esse monstro criado pelo homem na sua pandémica mania de tudo medir, de tudo querer controlar. Tudo. Com o tempo deu-se mal!.
É certo que vamos cumprindo inexoravelmente o calendário, inventado a olhar as voltas que a Terra dá sobre si própria e em simultâneo com o longo passeio em volta da estrela baptizada com nome masculino e por isso, travestida de um deus que durante milhares de anos, para muitos povos que já cometiam o erro pecaminoso de quere medir os tempos do tempo, justamente, através dele, do Sol ou da sua sombra. Mas isto são divagações minhas.
Cheguei à idade em que o tempo se gasta vez mais depressa,
Um inadequado e alarmante excesso de velocidade, pelo menos para mim que tenho esta, paradoxal e estupida sensação de gastação, sentir que o tempo se gasta tanto mais depressa quanto menor é o espaço de tempo que ainda tenho para gastar.
Quando completei, em Novembro passado, 72 voltas, em redor do Sol e girei como tudo à minha volta, mais de 30 mil vezes, já há um tempo que notei que os dias passavam mais depressa que a passagem do ano que passou num ano que tinha passado no tempo do fósforo, e depois carnaval, Páscoa, as férias da neta, as férias de todos, o Verão, o cair da folha, de novo o Natal, adeus a mais um ano, e assim, eis que já foi mais um carnaval, vamos embalados na Quaresma já com a Páscoa à vista, a pensar no Verão da imunidade grupal ou lá o que é.
Uma corrida. E olho para trás e mesmo em tempo de pandemia, com o tempo fechado a maior parte do tempo, penso: já se gastou um ano?
A minha mãe, que morreu com 96 anos, uma excelente conversadora gostava de estar sempre acompanhada e falar sobre tudo, a propósito de tudo, nos últimos anos que falava muito sobre o passado - vamos falando sempre mais sobre o que está para trás de nós à medida que ele se avoluma lá atrás - e eu tinha a sensação de que perdera a noção dos tempos por falar sobre coisas muito distantes no tempo, umas das outras, mas como se tivessem acontecido num plano, sem tempo no calendário. Acho que era uma defesa dela contra o tempo.
Um dia destes vou experimentar navegar nessa realidade irreal, para ver se funciona melhor! Tudo no mesmo plano e que se lixe o tempo!