28 de outubro de 2014

COMO NOS VELHOS TEMPOS

Na fugaz claridade de mais um dia 
que desponta atravessando o cortinado,
sinto a tua presença, ao meu lado,
por entre lençóis, naquele ruído de voo sem asas,
ao meu encontro.
O teu braço, abraça a minha cintura
a tua perna enrosca-se na minha
o teu respirar.
Não dizes nada e eu também nada.
Deixo-me apenas ficar.
Não estou a sonhar. Ainda bem!

Hoje, nem sei explicar,
mas precisava de acordar, assim. 
como nos velhos tempos.
.

24 de outubro de 2014

A PRETO E BRANCO

A noite traz sombras antigas, a preto e branco,
como nos filmes da minha infância.
Nesse tempo, eu não gostava da noite.
Mais do que as sombras, era o preto de que era feito o escuro
que me causava aquele nó na garganta; aquela ânsia.
Nem uma pontinha de branco para me atenuar o susto.

Por isso também não gostava daquela amiga da minha avó
que se vestia sempre de preto, da cabeça aos pés
que lhe dava aquele ar de noite infeliz
Longo casaco astracan preto, um palmo de canelas pretas 
que espreitavam entre o bordo do casaco e os botins de meio salto.
E, depois, aquelas luvas pretas que me deixavam petrificado 
quando me afagavam a cabeça.
Era então que descia ao nível da minha cara, 
o chapelinho preto com meio véu preto,
aqueles dois olhinhos envidraçados, piscos e míopes,
a face levemente rosada pelo rouge de odor enjoativo,
e sentia os lábios esborratados de baton discreto
num beijo trémulo que me deixava marca na testa.

Nunca tive um enfarte.
Talvez fosse demasiado criança
para falhas circulatórias dessas ou outras complicações.
Semicerrava os olhos, via apenas aquele vulto escuro
e ouvia uma vozinha trémula, dizer para a minha avó 
como se falasse no escuro de noite
e não quisesse acordar as sombras. 
"Tem um netinho que é um amor...uma criança feliz.".
A minha avó sorria, e eu num profundo terror
de que ela se lembrasse de pedir.
"Dá um beijinho à dona Beatriz".

18 de outubro de 2014

TOADA DOS MIL SEGREDOS

A mulher dos mil segredos
guardados dentro do peito
no lugar do coração.
juntara tantos medos
mais tamanho preconceito
que ao padre se confessava
depois da missa contava
dos outros, como se fossem dela.
P'ra receber o perdão
em seu peito acumulava
incontáveis penitências
e dos outros, indecências
ia ouvindo, mais e mais.
Segredos eram aqueles?
Pecados sim. E mortais!

E, assim fez durante anos
a mulher dos mil segredos
guardados dentro do peito
no lugar do coração.
Se a aldeia inteira sabia
que confiar só podia
nela e em ninguém mais
a fama saiu pelos montes
saltou rios, galgou pontes
espalhou-se pelos vizinhos.
Mais segredos a pedido
a mulher foi guardando
e ao padre confessando
como se fossem seus.
Tantos eram já os pecados
que o padre foi ao bispo
'Que me aconselhais, senhor,
que estais mais perto de Deus'.
E, do bispo regressou
com missão bem espinhosa.
A mulher dos mil segredos
guardados dentro do peito
no lugar do coração
entraria num convento
passando o resto da vida
em clausura total
até que um dia a morte
tirasse a sua vida em sorte
e viesse prá levar.

A mulher dos mil segredos
guardados dentro do peito
no lugar do coração
quando soube a notícia
ali na sacristia
caiu redonda no chão.
Sem um ai, sem um ui!
Mas, nem um minuto após
lívida, estrebuchou tanto
em tamanha a gritaria
em tão desmedido pranto
que o povo acorreu à porta
a saber o que seria.
A mulher calou-se, então
e já todos a julgavam morta
quando ela se levantou do chão
e olhando a multidão, disse: 
'Eu sou a mulher que trago
o que é vosso, em segredo,
por penar as vossas culpas
me condenam ao degredo
sem mais ver a luz do dia
sem mais palavra dizer.
Pois não quero carregar
pecados que não são meus
e aqui juro perante Deus
que nunca mais vou ouvir
nada, de nada, de nada.
E o padre mandou-a em paz

E a partir de então, 
a mulher dos mil segredos
guardados dentro do peito
não juntaria mais medos
no lugar do coração
Ninguém mais confiaria
coisas simples ou banais
fossem pecados mortais
mas segredos perdidos, não!

AGUARELA

Das serras por veredas, a vida decide
até que chega à planura onde se divide
em mil braços para abraçar o mundo.
No horizonte, as asas brancas dos moliceiros
parecem mais alinhadas na água dos carreiros
que transforma o lodo em chão fecundo.
Na moldura das salinas, de branco aparece
o sal da vida, pequenos montes. E, permanece
transformando o charco em chão fecundo.
No canal principal e no outro, de nome santo
desfilam arco iris de casario. Um encanto
de mil braços para abraçar o mundo.

17 de outubro de 2014

CAFÉ CENTRAL

Chamava-se Café Central e ficava no centro do largo.
E o largo era o centro de tudo.

No Verão, quando a vila se animava mais
com toda aquela gente, que vinha de fora,
à procura do cenário ideal para descansar o corpo
e temperar a alma, dos distúrbios de um ano de cidade,
uma fila de cadeiras e mesas em verga amarela e azul,
esticava-se pelo passeio, encostada à parede do edifício do clube, 
para ter uma sombra e ganhar a brisa do fim de tarde.

Eu comprava o jornal no quiosque junto ao coreto

e sentava-me na última mesa, quase à porta do clube,
a passar os olhos por notícias que mal lia, por fotos que mal via.
Vinhas naquele vestido de algodão, leve como pluma,
cor azul, céu de primavera e corolas esverdeadas
a querer voar-te do corpo a cada passo que davas.
Acenavas-me, ainda de longe, do outro lado do largo,
e eu já a sentir os teus lábios no sorriso dos olhos,
e o cheiro a alfazema que saltava da tua pele
onde o Sol deixava sempre uma camada dourada.

Depois íamos, por ali fora, junto à muralha do castelo,

ao fim da tarde, mãos dadas, a ouvir o bater de asas e o piar
das gaivotas que pairavam círculos, em contra-luz,
sobre barcos pousados no espelho da baía.
Umas vezes falávamos de tanta coisa, 
outras, de nós também. 
Sem planos para aquele quase paradoxo
de nos querermos, sem nos termos.
Ou de nos termos mais um ano, todos os anos,
naquele mês de estranho encantamento.

Ate que, um Verão, esperei todo o tempo do mundo,

que era o que tu me dizias que nós (ainda) tínhamos,
quando avançava futuros onde cabíamos os dois.
Não houve mais vestido cor de primavera
nem cheiro a alfazema a sair da pele, nem sorriso nos olhos.
No ano anterior, nas asas de uma gaivota,
tinha dito que te amava e ficaria contigo para sempre.
Não sei se foi por medo da eternidade mas tinhas razão. 

Nada é eterno.

Nem o Café Central. 
Nesse ano cedeu lugar a um banco...

15 de outubro de 2014

A FLOR DE QUEM ME QUER

Começo por mal me quer 
primeira pétala arrancada,
na segunda é bem me quer, 
depois muito, pouco e nada.

Mal me quer
ou bem me quer, 
muito,
pouco,
nada! 

Dizem que és mentiroso,
um dia assim, outro assado.
Eu desfolho-te ansioso
tu deixas-me desolado.

Mal me quer
ou bem me quer,
muito,
pouco,
nada!

Seja o que for, pode ser,
na última separada.
Acaba como quiseres
eu já não creio em nada.

Mal me quer,
ou bem me quer,
muito,
pouco,
nada!

10 de outubro de 2014

UM QUASE SONETO PARA UM AMIGO INTEIRO

Não preciso que sejas como sou,
nem que gostes do que gosto;
Nem que andes por onde vou
ou apostes no que aposto.

Não te procuro, onde estou
no Natal, Primavera ou Agosto.
Dás o que dás; dou o que dou
parece absurdo, assim é suposto.

Amigo, que não és para ocasiões.
És presente, quando estás ausente
e assim serás eternamente.

A amizade está nos corações.
Útil sem ser utilidade mas persiste

e basta, só porque existe.

9 de outubro de 2014

É A VIDA...

A vida é curva longa e perigosa, 
estrada estreita e complicada.
A descer é rápida, vertiginosa
quando sobe é lenta e demorada.

A vida nunca é com'a queremos,
mas passamos a vida a tentar.
A vida é sempre mais ou menos,
mas não há outra p'ra gastar.

Um dia, quando a vida me cansar,
fecho a porta e vou-me embora.
Nem mais um dia quero esperar,
nem sequer mais uma hora.

8 de outubro de 2014

FADO À ESPERA DUMA GUITARRA

Voltaste de noite e sem lua,
sem amargura, 
nem desejo de vingança.

E eu, à porta da rua, 
a olhar-te como se olha uma lembrança.

E vi-te de alma nua,
tão despida
mas tão cheia de esperança
que te abracei num impulso, num ardor.

E disseste: Voltei e serei tua, 
se me quiseres, 
assim mesmo, como sou. .  

E eu, disse na sombra do olhar:
Perdoa-me, se puderes. 
Eu aqui estou. 

E ficámos assim, sem mais dizer,
um púcaro de vinho ao lado,
uma guitarra, baixinho a gemer,
silêncio que se vai cantar o fado
até o dia nascer..

A MINHA INFÂNCIA

Na minha longínqua infância,
havia aquele muro intransponível do quintal da minha avó
tão assustadoramente alto
que nem a minha imaginação se atrevia a dar o salto
para o outro lado.

Do lado de cá havia dois canteiros com flores de nomes estranhos,

um banco de tábuas castanhas e pés de ferro,
em frente a uma gaiola enorme onde pássaros amarelos e azuis
vivam em permanente agitação, à procura da saída 
e um pequeno lago redondo onde rodopiavam, sem descanso,
peixes verdes e vermelhos com reflexos alaranjados.

Passei esse ano, a cavalgar por planícies imaginárias, 

num cavalo de papelão com crinas e rabo de estopa
que eu pedira ao Menino Jesus e ele me deixara, 
na chaminé da cozinha, no último Natal.
Depois aparecia a minha avó e eu ia com ela
falar com os pássaros da gaiola, dar de comer aos peixes do lago
ou regar as flores com nomes estranhos
e era então que a minha avó me dizia que não conhecia o outro lado, 
porque nunca tinha espreitado  (era feio espreitar, dizia-me ela)
e eu ficava a olhar para o muro demasiado alto, tão alto 
que nem a imaginação da minha avó era capaz de transpor
e a censurar o Menino Jesus, que me dera aquele cavalo sem asas.

E, então lembrei-me que devia ter sido a minha avó que pedira

para me dar o cavalo sem asas,
para que eu não pudesse voar por cima do muro
e espreitar o outro lado da minha imaginação.

4 de outubro de 2014

IMAGINAÇÃO


Cerro os olhos até que cegos se abram para a beleza das coisas 
que ainda não foram inventadas.
Oiço no fundo da minha mente os sons de um instrumento perfeito, 
que geme a última nota de todas as sonatas.
Cheiro a flor de bem me quer e muito, corola de amizade, 
pétalas de vida de quem só se quer muito.
Saboreio os frágeis contornos do paraíso, ilha da felicidade  
voo de ave que passa sem deixar rasto.
Toco a leveza das bolinhas de sabão, frágeis como a esperança,  
coloridas e breves como risada de criança.

Dane-se a realidade se não alegra o coração.

Mate-se a racionalidade que não ordena a razão.

INSÓNIA


Permaneço quieto, exausto, na obscuridade do quarto, 
naquela lucidez inútil de não conseguir imaginar nada,
nem sequer um pedaço de sonho. 

Pisco os olhos, cerro as pálpebras, abro os olhos;

agora vou abrir muito os olhos para ver se consigo contar as tábuas do tecto do sótão
ou ponho os olhos para trás da cabeça, num esforço que me faz doer o pescoço
num esforço que faz doer a almofada.
Estou a tentar contar as barras de ferro da cabeceira da cama.
Inútil! Já nem contar sei.

Volto-me para a esquerda. Costumo adormecer melhor, de lado, para a esquerda.

Volto-me para a direita. Nunca adormeci virado para direita.
Aí estou, de novo, de costas no colchão, com os olhos muito abertos, colados ao tecto.
Doí-me o corpo; doí-me a alma...
Que alma? Eu não tenho alma. Só corpo!
Ah! E olhos! Também tenho olhos. Olhos abertos colados no tecto.
É verdade; e a boca seca...

Levanto-me. 

O quarto parece-me maior e o buraco escuro onde devia estar a porta, mais longe.
Não sei onde estão os chinelos, nem o roupão
e vou de pés nus, de corpo nu, de alma nua (eu já não tenho alma) não sei para onde.
Também não importa nada. 
O que eu não quero é este quarto, nem esta cama, 
nem esta lucidez inútil de não conseguir imaginar nada
nem sequer um pedaço de sonho.