Chamo-me Ahmed Abdhalla. Tenho 47
anos. Faz seis anos em Novembro que aqui estou.
Aqui é o centro de refugiados da Bobadela. Estou
desempregado.
Nunca tive uma oportunidade de trabalho a
sério. Vivo de pequenos favores.
Do subsídio para refugiados. Só recebo metade. Já sou cidadão português mas
isso não conta.
Todos os meses escolho entre dar de comer à família ou pagar a renda.
As minhas duas filhas usam véu islâmico, vão à escola e já falam português
melhor do que eu.
Lembram-se vagamente da viagem. O meu único rapaz não tem memória. Tinha seis
meses.
Estou muito longe de Mogadíscio mas gosto de aqui estar. Pelo menos temos
paz.
Quando a bomba rebentou e destruiu as casas,
foi o terror, confusão, pó, choro de crianças e gritos.
Foi sorte, a minha mulher e os nossos filhos terem-se
atrasado no mercado.
Entreguei a chave da loja destruída, na mesquita e pedi-lhes que vendessem
tudo.
Partimos a pé para a Etiópia. Queríamos apenas viver. Fugir da morte.
A estrada de pó estava pejada de pequenos grupos de gente que fugia com os parcos
haveres.
Enquanto caminho, despeço-me do meu país, da Somália, sem sentir saudades.
Na minha cabeça só existem três palavras: família, Europa e vida.
Perguntavam se tinha medo de atravessar o Mediterrâneo, mas não
percebia a pergunta.
Não íamos à procura de uma vida melhor. Íamos à procura de vida. Atrás de
nós só havia morte.
Os três meses na Etiópia foram o tempo mais seguro da viagem. Mas era preciso
prosseguir.
Ilegais. Era assim que éramos tratados. Gente sem direitos. Sem direito a
viver.
Para onde quer que nos voltássemos, só víamos guerra e miséria em volta.
Depois em cima de um burro. Viagem que se previa longa. Até ao Sudão do
Sul.
Dois meses, sem morada fixa. Parar para dormir e para comer, quando era
possível.
Novo país, nova guerra, novos perigos. Arrisquei a vida e a família. Queríamos viver.
Indicaram-me um traficante que nos leva até à Líbia. Lá conseguiríamos
barco.
Vinte e cinco dias de deserto e cento e cinquenta dólares por cabeça.
Quando chegámos ao local combinado, havia mais vinte à espera.
Quinze adultos e dez crianças num Land Cruiser de caixa aberta.
É Verão e durante o dia o sofrimento e a sede são indescritíveis.
À medida
que o calor aperta. Paramos pelo caminho para comer e beber.
Para dormir na beira
da estrada. Se houvesse sombra melhor, senão pouco importava.
Trípoli é, naquele inferno, a oportunidade única para uma vida
nova.
No meio do desespero vencia a esperança. Cada dia que sobrevivemos era uma vitória.
Quanto mais perto estávamos da Europa, mais aumentava o valor da vida.
Já avistávamos o mar como quem vê o Céu. Já não podíamos morrer.
Dezenas de milhares, ao monte, na plataforma de
cimento e traves de madeira.
Cais de embarque. De lá esperávamos a oportunidade. Podia demorar
semanas.
Havia homens armados com espingardas automáticas e camuflados.
Parecia um campo de concentração. Sabia que o trajeto seria feito de noite.
Tinha
que ser de noite. Não importava onde vamos parar.
Bastava que fosse num sítio qualquer desde que fosse na Europa.
Mesmo que toda a gente saiba o que se passa, convinha disfarçar.
Por isso, sempre que o Sol se punha crescia a ansiedade.
Muitos não aguentavam. Fome, sede, angústia, medo. Uma loucura.
Os corpos dos que não aguentavam eram carregados em jipes, durante a noite.
Só queria salvar os meus filhos. Noite escura quando nos vieram avisar.
Dou então o dinheiro que me resta ao traficante. Nunca o tinha visto antes.
Ele contou as cabeças. Cinco pessoas. Não havia descontos.
Vinte e cinco pessoas num barco de oito metros. Já não se podia voltar
atrás.
O barco era pequeno e já metia água. Não havia espaço para nos mexermos.
Deram-nos umas panelas e uns baldes de plástico para irmos esgotando a água.
A única água
que entrava, era a salgada. A mesma que íamos devolvendo ao mar.
Andamos durante horas quando o fraco motor do barco parou.
Ficou sem combustível. O barco ficou a oscilar e começou a amanhecer.
Um avião passou baixo sobre nós. Deu uma volta e tornou a passar.
Andámos à
deriva durante horas. Chegámos à Europa ou voltámos para trás?
Um barco da marinha italiana aproximou-se. Os marinheiros acenavam-nos.
Nós nem nos mexemos. Estamos exaustos e com medo
que o barco vire.
Se tivessem levado mais tempo não teríamos sobrevivido.
Olhei para cima e ao ver um céu limpo e muito azul, levanto os braços.
E agradeço ao meu Deus. Obrigado por nos teres mantido vivos!