6 de setembro de 2015

AS RUÍNAS DE DAMASCO

Abram as portas para receber os filhos da má sorte
Abram os braços para abraçar os que sofrem a dor da guerra
Abram os corações para abrigar os que fogem da morte
Abram as portas aos que vêm de onde não há futuro ou guarida
Aos que vêm de onde a esperança não tem vida.

O veludo das cadeiras onde sentamos a nossa egoísta tranquilidade
desfaz-se na nossa paz hipócrita; morre no pó da liberdade.
Chegou a hora de pagarmos pelas ruínas de Damasco.



        ( Setembro de 2015, movimento dos refugiados sírios e a enorme catástrofe humanitária)

3 de setembro de 2015

FUGA PARA A VIDA



Chamo-me Ahmed Abdhalla. Tenho 47 anos. Faz seis anos em Novembro que aqui estou.
Aqui é o centro de refugiados da Bobadela. Estou desempregado.
Nunca tive uma oportunidade de trabalho a sério. Vivo de pequenos favores.
Do subsídio para refugiados. Só recebo metade. Já sou cidadão português mas isso não conta.
Todos os meses escolho entre dar de comer à família ou pagar a renda.
As minhas duas filhas usam véu islâmico, vão à escola e já falam português melhor do que eu.
Lembram-se vagamente da viagem. O meu único rapaz não tem memória. Tinha seis meses.
Estou muito longe de Mogadíscio mas gosto de aqui estar. Pelo menos temos paz.
Quando a bomba rebentou e destruiu as casas, foi o terror, confusão, pó, choro de crianças e gritos.
Foi sorte, a minha mulher e os nossos filhos terem-se atrasado no mercado.
Entreguei a chave da loja destruída, na mesquita e pedi-lhes que vendessem tudo.
Partimos a pé para a Etiópia. Queríamos apenas viver. Fugir da morte.
A estrada de pó estava pejada de pequenos grupos de gente que fugia com os parcos haveres.
Enquanto caminho, despeço-me do meu país, da Somália, sem sentir saudades.
Na minha cabeça só existem três palavras: família, Europa e vida. 
Perguntavam se tinha medo de atravessar o Mediterrâneo, mas não percebia a pergunta. 
Não íamos à procura de uma vida melhor. Íamos à procura de vida. Atrás de nós só havia morte.
Os três meses na Etiópia foram o tempo mais seguro da viagem. Mas era preciso prosseguir.
Ilegais. Era assim que éramos tratados. Gente sem direitos. Sem direito a viver.
Para onde quer que nos voltássemos, só víamos guerra e miséria em volta.
Depois em cima de um burro. Viagem que se previa longa. Até ao Sudão do Sul.
Dois meses, sem morada fixa. Parar para dormir e para comer, quando era possível.
Novo país, nova guerra, novos perigos. Arrisquei a vida e a família. Queríamos viver.
Indicaram-me um traficante que nos leva até à Líbia. Lá conseguiríamos barco.
Vinte e cinco dias de deserto e cento e cinquenta dólares por cabeça.
Quando chegámos ao local combinado, havia mais vinte à espera.  
Quinze adultos e dez crianças num Land Cruiser de caixa aberta. 
É Verão e durante o dia o sofrimento e a sede são indescritíveis. 
À medida que o calor aperta.  Paramos pelo caminho para comer e beber. 
Para dormir na beira da estrada. Se houvesse sombra melhor, senão pouco importava.
Trípoli é, naquele inferno, a oportunidade única para uma vida nova.
No meio do desespero vencia a esperança. Cada dia que sobrevivemos era uma vitória.
Quanto mais perto estávamos da Europa, mais aumentava o valor da vida.
Já avistávamos o mar como quem vê o Céu. Já não podíamos morrer.
Dezenas de milhares, ao monte, na plataforma de cimento e traves de madeira.
Cais de embarque. De lá esperávamos a oportunidade. Podia demorar semanas.
Havia homens armados com espingardas automáticas e camuflados.
Parecia um campo de concentração. Sabia que o trajeto seria feito de noite. 
Tinha que ser de noite. Não importava onde vamos parar. 
Bastava que fosse num sítio qualquer desde que fosse na Europa.
Mesmo que toda a gente saiba o que se passa, convinha disfarçar.
Por isso, sempre que o Sol se punha crescia a ansiedade.
Muitos não aguentavam. Fome, sede, angústia, medo. Uma loucura. 
Os corpos dos que não aguentavam eram carregados em jipes, durante a noite.
Só queria salvar os meus filhos. Noite escura quando nos vieram avisar. 
Dou então o dinheiro que me resta ao traficante. Nunca o tinha visto antes.
Ele contou as cabeças. Cinco pessoas. Não havia descontos.
Vinte e cinco pessoas num barco de oito metros. Já não se podia voltar atrás. 
O barco era pequeno e já metia água. Não havia espaço para nos mexermos.
Deram-nos umas panelas e uns baldes de plástico para irmos esgotando a água. 
A única água que entrava, era a salgada. A mesma que íamos devolvendo ao mar.
Andamos durante horas quando o fraco motor do barco parou.
Ficou sem combustível. O barco ficou a oscilar e começou a amanhecer.
Um avião passou baixo sobre nós. Deu uma volta e tornou a passar. 
Andámos à deriva durante horas. Chegámos à Europa ou voltámos para trás? 
Um barco da marinha italiana aproximou-se. Os marinheiros acenavam-nos. 
Nós nem nos mexemos. Estamos exaustos e com medo que o barco vire.
Se tivessem levado mais tempo não teríamos sobrevivido. 
Olhei para cima e ao ver um céu limpo e muito azul, levanto os braços. 
E agradeço ao meu Deus. Obrigado por nos teres mantido vivos!