14 de novembro de 2017

QUANDO FOI QUE ADORMECI?

Não. Não é insónia. 
Insónia é quando queremos dormir e não conseguimos.
Aqui, sou eu mesmo que não durmo porque não quero..
Finjo que durmo mas não durmo.
Deito-me, simplesmente. Fecho os olhos. Escuto o silêncio.
Depois penso em algo que gostava que acontecesse
ou simplesmente uma vida inventada,
no escuro interior da minha cabeça, da minha imaginação
e por aí fora, como num filme, sem imagem nem som
uma história que começo a contar a mim mesmo.
uma história que sou eu que faço e me agrada
apesar de ter de fingir que não sei o fim
para não lhe tirar aquele interesse que a vida tem.
porque é uma história de vida.
A minha! Aliás, uma história de vida que não é minha
embora imaginada por mim para que pudesse ser.
Projectos, planos, momentos colados uns aos outros
É uma boa altura. Está tudo tão sossegado, tão quieto.
que sou capaz de ouvir a imaginação a trabalhar
....e depois adormeço...tranquilamente, sem imaginação.
Nunca sei em que preciso momento em que isso acontece
mas sei que acontece porque depois, acordo.
E embora nem pense já no que pensei antes de adormecer
sinto-me feliz, sobretudo, por acordar para a vida real
onde também há vidas inventadas...

6 de novembro de 2017

DEPRESSÕES

Uma estranha prostração, uma imobilidade cansada
permaneço deitada, sem reacção a nada!
Neste refúgio de olhos abertos sem nada ver
nesta vontade de querer não querer.
A tarde, numa lenta agonia,
apenas aguarda a noite, o luto do dia.
Apetece-me estar, ficar nesta estranha prostração,
nesta imobilidade cansada, sem reacção.
A realidade ficou tão diferente, desde que partiste...


4 de novembro de 2017

SERIA BEM MAIS FÁCIL

Se não fosse tão gago seria tão fácil dizer-te que passo as noites a sonhar contigo, que te amo que nem um louco se é que amar como um louco seja aconselhável, como gostaria tanto namorar contigo, sei lá, talvez até de me casar contigo. Todas as manhãs apanho o autocarro das oito e dez e duas paragens depois quando tu entras já eu tenho o coração a bater como deve bater um coração depois de correr uma prova de obstáculos e tenho as palavras todas enfileiradas na cabeça

(gosto tanto de ti, queres namorar comigo? e se casássemos já!)

na minha cabeça as palavras não gaguejam e eu digo tudo sem interregnos que pena tu não poderes ouvir o que eu penso e lá estás tu na tua paragem duas paragens depois da minha, à espera do autocarro das oito e vinte que é o mesmo que o meu que é o das oito e dez, duas paragens antes e entras, olhas para mim, tenho a certeza que é para mim e eu que já tenho o coração com dez minutos de uma ansiosa corrida de obstáculos e vamos os dois e mais não sei quantos passageiros pendurados nas argolas, hora de ponta, autocarro à pinha mas não interessa nada porque só te vejo a ti, linda, maravilhosa, eu com as palavras na cabeça tão certinhas para te dizer

(gosto de tanto ti, queres namorar comigo? e se casássemos já!)

vinte minutos pendurados nas argolas em equilíbrios de bêbedos, nunca estive bêbedo porque sendo gago e bêbedo deve ser muito mau, e chega a nossa paragem, saímos empurrando outros que nos empurram, esgueiramo-nos por entre os que vão continuar pendurados nas argolas e olhas para mim, tenho a certeza que é para mim, mas eu hesito (e se não?!) e gaguejo um sorriso mas já vais em passo apressado em direcção ao largo, à loja de ferragens onde és a 'menina da caixa' e vou no sentido oposto, ainda olho para ver se te vejo mas já não estás ali e sigo em direcção ao ministério onde passo o dia a alinhar os números, a tratar dados, a produzir estatísticas de tudo sobre tudo e a pensar como seria tão bom se tu pudesses ouvir o que eu penso

(gosto de tanto ti, queres namorar comigo? e se casássemos já!)

e chega o fim da tarde, do dia de trabalho, como sais sempre depois de mim, vou ao café tomo uma bica, compro o jornal, espreito à porta da pastelaria, vejo-te ao fim da rua, a vir do largo, da loja de ferragens e chega o autocarro, o mesmo que o meu porque eu espero pelo teu, é hora de ponta mas eu não me importo porque assim estou mais tempo contigo, meia hora de caminho, eu com o jornal dobrado debaixo do braço, também não gaguejo a ler mas só quando leio só para mim, regressamos às argolas e eu achar que tu me sorris e eu não sei se hei-de sorrir, não, não afinal é impressão minha, mas olhaste de certeza que olhaste e sais na tua paragem e eu fico mais duas paragens, com as palavras a saltarem-me da cabeça, na borda dos lábios em fileira sem gaguejar

(gosto de tanto de ti, queres namorar comigo? e se casássemos já!)

e chego ao meu minúsculo 'tê um' onde vivo só com a minha gaguez, com um quarto e uma sala com uma 'kitchenette' que mal dá para estrelar um ovo mas que parece tão grande, enorme e vazio, desaconchegado e imagino-me contigo ali junto à janela, a vermos ao longe as luzes da ponte e dos carros na ponte e tu a encheres de alegria o meu 'Têum', a aconchegares o meu amor com os teus olhos doces, a dizeres-me aquilo que eu não consigo dizer-te sem gaguejar

(gosto tanto de ti, queres namorar comigo? e se casássemos já!)

há uns meses atrás, ao almoço, o Osório, almoço sempre com o Osório porque é meu amigo e tem paciência para aturar a minha gaguez, disse-me que treinasse dizer tudo a cantar porque era mais fácil e que respirasse fundo, descontraísse e eu tenho treinado mas depois lembro-me que és capaz de pensar que estou louco por dizer-te que gosto de ti, a cantar e perguntar se queres namorar comigo, a cantar, e pedir-te em casamento, a cantar e fico logo nervoso só de pensar, como me posso descontrair se, quando te vir amanhã no autocarro e te disser a cantar

(gosto tanto de ti, queres namorar comigo? e se casássemos já!)

se eu não fosse tão gago, seria tão mais fácil



... 

3 de novembro de 2017

EM NOVEMBRO,


EM NOVEMBRO, 
As noites são mais longas do que a claridade
Deito-me e sonho contigo, engano meu
se, apenas, queria ser um sonho teu.
tão leve como a luz sem peso nem forma.
tão suave como o ar que em tudo se torna
o amor por ti, é aquele sonho meu
que brilha e respira, além da eternidade.

1 de novembro de 2017

QUANDO A TERRA COMEÇAR A TREMER

CHAMAVA-ME ISMAEL PORTAL sapateiro com loja na rua dos Mercadores, quando se ia para a Ribeira das Naus, mais ou menos a meio caminho. Tinha dois aprendizes que faziam as entregas dos arranjos e também encomendas de sapatos e botas para a Corte de El Rei. 
Vivia no andar por cima da loja, com a minha esposa Beatriz, mãe das minhas filhas amadas Isabel e Mafalda. O meu filho Afonso, partira havia seis meses na nau Glória, rumo a terras de Vera Cruz e enviara carta, há duas semanas, que estava de boa saúde e partiria para o Sertão em caravana em demanda de ouro que, segundo se dizia, eram de abundância naquelas paragens.
Éramos felizes e estávamos num bom momento das nossas vidas..
Em breve seria o casamento de Isabel. com Rodrigo que servia na Guarda Real tendo conhecido Isabel que era, por sua vez, aia da princesa Maria.
MAS A TERRA IRÁ TREMER, pelas primeira horas da manhã quando a maior parte da população estiver nas igrejas e cemitérios já que é feriado e dia de Todos os Santos.
Primeiro um ronco fará estremecer os nossos corações, brotando debaixo de nós, debaixo do chão, de todo o chão, de todo o lado. Depois, tudo começará a abanar; casas que desabarão e logo se transformarão em montes de pedras e madeiros com os moradores nas ruas num terror desmedido enquanto outros ficarão logo ali, debaixo dos escombros. O chão abrir-se-á em fendas até ao inferno e as calçadas enrolar-se-ão como se de tapetes se tratasse. Para os lados da Sé rebentará incêndio que se propagará. e serão mais casas que arderão como archotes pela encosta até ao castelo.
Os céus fechar-se-ão num breu aterrador e por baixo dos nosso pés, o chão depois de uns momentos de quietude voltará a tremer e a provocar mais ruínas, mais incêndios; pessoas e animais que desaparecerão nas brechas abertas.


O PÂNICO LEVARÁ A MULTIDÃO para o Terreiro do Paço, porque se trata de local arejado e amplo e haverá soldados da Guarda Real que tentarão por alguma ordem e organizar socorro às vítimas. Pequenos grupos de homens e mulheres tentarão desesperadamente com baldes, panelas e outros utensílios que puderam encontrar, apagar alguns incêndios enquanto muitos outros andarão a correr de um lado para o outro sem préstimo mas apenas movidos pelo terror. Mas os incêndios por toda a cidade não pararão de aumentar. Milhares de velas colocadas para iluminar santos e altares por ser dia de Todos os Santos.

É ENTÃO QUE UM GRANDE CLAMOR ecoará no terreiro e logo centenas de pessoas se atropelarão numa corrida para as ruas que sobem para o castelo e para o bairro alto por cima das próprias ruínas e dos desgraçados que caíam no pânico da fuga. enquanto outros num pavor extremo encontrarão a morte já ali junto ao rio. Uma onda enorme tapando a visão do céu, vinda do lado da ribeira das naus, trazendo barcos grandes e pequenos, pedras, restos de árvores e destroços sem nome tudo arrasará, Mais alta que as casas, tudo abafará no fragor da pancada.


A ONDA IRÁ FAZER AINDA MAIS MORTES E SEMEARÁ AINDA MAIS HORROR e depois de uns momentos, outra se seguirá o rio subirá das margens depois de quase ter desaparecido e fará das ruas  um mar de destroços.
Beatriz, a minha mulher irá desaparecer, o mesmo sucedendo à nossa filha Mafalda, Um dos meus ajudantes será encontrado semanas mais tarde nos escombros da loja; do outro, nada se saberá mais. A minha filha Isabel sobreviverá uma vez que se encontrava com a família real em Caneças mas o noivo morrerá quando a empena de um prédio na rua dos douradores ruir no exacto momento em que ele se encontrar a tentar salvar um homem com uma criança ao seu colo.

QUANTO A MIM, ISMAEL PORTAL dirigia-me para a Sé à missa das nove quando tudo começará. Tentarei voltar para trás, já com o pânico instalado, mas serei atropelado por carruagem puxada a quatro cavalos que se espantarão, já que o cocheiro cairá do seu lugar e ficará ferido, ao meu lado, no meio da rua enquanto o rodado traseiro me passará sobre o peito e me quebrará o esqueleto deixando-me sem respirar. Acabarei por morrer quando segunda onda com os destroços acumulados pela primeira chegar ás portas de Santo António da Sé e tapar para sempre a luz.

NOTA FINAL. Ismael Portal nunca existiu mas esta minha ficção daquela trágica manhã do primeiro dia de Novembro de 1755, em que mais de 1/3 da população de Lisboa morreu ou desapareceu, e mais um número incontável de feridos pretende imaginar o relato de uma possível vítima de um dos terramotos seguido de maremoto dos mais violentos e mortíferos de toda a história...



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