31 de agosto de 2016

A MIM, ENSINARAM A TER MEDO

A mim, ensinaram a ter medo!.
Medo de dizer e de não dizer;
medo de fazer ou apenas de dizer: faço! 
Medo de incomodar, medo de conhecer,
medo de causar embaraço
medo de reclamar e perturbar,
medo de chegar tarde e cedo demais,
medo de um beijo e de um abraço,
medo do que é a menos e do que é a mais
medo do transparente e do baço
medo da chuva e do Sol,
medo da noite e do dia,
medo da luz e da escuridão
medo do gato e do cão
medo do silêncio e do trovão
medo do mar e da floresta,
medo do que parece mal,
medo de estar em festa,
medo de ser normal.
Medo de tudo e de tanto
que me deu este espanto,
que me deu este cansaço
de viver com medo de ser.

21 de agosto de 2016

UMA MELGA NO QUARTO


Não sei se já lá estava à minha espera se entrou enquanto estive a fingir que lia mais duas páginas daquele livro que ando a fingir que estou a ler só para chamar o sono. Seja como for quando apaguei a luz, perto das três horas. tinha um sono fatal. Mas, ainda nem meia hora depois, um zumbido de caça ao ataque,
(os alemães na segunda guerra tinham uns aviões, os 'stukas' que quando atacavam, faziam um zumbido aterrador para os soldados que os esperavam em baixo)
que me fez acordar em sobressalto. Acendo logo a luz e aguardo pacientemente que poise num sítio que a deixe a descoberto
(consigo transformar-me num feroz predador de almofada, jornal, ou revista, sapato ou chinelo, seja o que for, em punho e vou numa caçada por todos os cantos do quarto até que, ei-la pousada na porta do roupeiro, na moldura do espelho, bem perto no espaldar da cama, se muito esperta no interior do abat jour ou, ó suprema satisfação, se muito estúpida, na parede branca ali bem à vista)
ou vou ser picado por várias vezes, em vários sítios do corpo, com consequências para o meu descanso. todo o resto da noite,
(desde criança que tenho uma péssima relação com este insecto arraçado de vampiro que aliás segundo relatos da minha mãe, vem desde o berço. Era normal acordar, exausto e desfigurado, com uma pálpebra ou um lábio ou um lóbulo da orelha inchados ou mesmo com vários inchaços caso o meu pai ou a minha mãe não tivessem conseguido caçar o bárbaro)
com comichão do tipo quanto mais coça mais comichão tem, voltas e mais voltas, almofada sobre a cabeça, depois o lençol esticado a fazer de tenda, depois passo pelas brasas, depois abro a defesa, depois o zumbido fatal e zás, nas costas, o pior de todos os sítios..

Esta hoje estava com sorte! Apenas a ouvia. Quando comecei a coçar o braço e as costas da mão esquerda e antes que a coisa azedasse, desci para a sala e depois de ler um bocado e vim aqui sentar-me a escrever o relato da insónia.
E eis que, de repente, a oiço atrás de mim primeiro e num assomo de audácia passa mesmo à minha frente sobrevoando o teclado. Sigo-a com o olhar e
(suprema satisfação, esta pertence às estúpidas)
lá está ela, a meio da parede mesmo por baixo do quadro com o Rossio estilizado que é da autoria do meu compadre Rogério.
Já vou de jornal dobrado para lhe dar com as notícias todas.Pás! Uma só pancada em cheio. Esmagada! Vitória tardia. Mas vitória! Uma enorme contrariedade. O rasto de sangue na parede!
Do meu sangue, ainda por cima... .

19 de agosto de 2016

(D)ESCREVER

IA FAZER SETE ANOS QUANDO FIQUEI SEM AS AMÍGDALAS, 
Nessa época arrancavam-se amígdalas a torto e a direito, numa operação redentora destinada a por o mutilado a coberto de futuras inflamações na garganta e consequentes febres.
O médico mandou-me sentar num banco, numa sala às escuras, na testa uma lâmpada de mineiro, pediu-me gentilmente para abrir a boca, colocou uma espécie de anel de metal que me impediu de a fechar de novo, puxou-me a língua para fora com uma mola de fixação, introduziu-me na garganta uma pistola com duas lâminas penduradas e zás, deitei fora num vómito dolorido, duas almôndegas ensanguentadas, para um recipiente esmaltado. Devo juntar que, como em muitas ocasiões e o meu caso foi uma delas, tudo isto se passou sem anestesia.

Confesso que não recordo bem os momentos seguintes mas a minha mãe dizia que as lágrimas lhe rolavam pelo rosto num arrependimento tardio enquanto eu permaneci sentado, choramingando, a seguir com o olhar, as minhas amígdalas que eram metidas num frasco cheio de um líquido incolor.
Como a cicatrização era dolorosa e eu já sabia escrever em letra de imprensa, quando cheguei a casa, tinha um bloco de folhas brancas e uma lapiseira com o rato mickey à minha espera e, também, aquele autocarro vermelho, de dois pisos que eu tinha visto na montra de uma loja na Graça e que era igual aos nossos que eram verdes e enormes que faziam a minha alegria quando andava com o meu pai e a minha mãe, no banco da frente do primeiro andar a ver tudo de cima e ao nível das varandas dos primeiros andares dos prédios que passavam por mim nas ruas, durante a viagem, quando íamos a Sapadores visitar a minha avó.
Como o médico tinha advertido os meus pais de que iria ter uns dias seguintes algo dolorosos e que provavelmente evitaria falar muito, resolvi abusar o mais que pude da escrita e da minha mãe que na sua infinita compaixão se aprestava a satisfazer todas as vontades escritas, sempre com um sorriso carinhoso.

Mas tardava em falar(a minha mãe não sabia que eu já falava alto, comigo mesmo) com a desculpa escrita de que não conseguia, Quando voltei ao médico, uma semana depois, um atento exame à minha garganta arrancou-lhe uma exclamação positiva.
"Está excelente; a cicatrizar muito bem!"
Mas a minha mãe com a timidez que a angústia não deixou calar.
"O senhor doutor, desculpe, mas acha que o meu filho poderá ter alguma lesão na fala, nas cordas vocais, não sei....é que ele não diz nada, só uns sons, desde que foi operado." 
O médico sorriu atrás dos óculos e da lâmpada de mineiro que parecia ter sempre colada à testa.
"Não se preocupe minha senhora. O seu filho está óptimo. Ainda o vai mandar calar muitas vezes."

9 de agosto de 2016

DE REPENTE, NO ESCURO DA NOITE







De repente, no escuro da noite 
uma luz tremula no fundo da mata densa
um vulto corre do fundo da noite, para a noite funda,
perseguido pelo seu próprio crime.
Uma sirene toca um quarto de hora depois.
Portas que batem, janelas que se abrem
nas casas espalhadas pelas ruas da vila. 
Há uma correria de botas sobressaltadas
de vozes estremunhadas, de rostos apressados
A encosta explode num vermelho dantesco
o fumo, pano de cinzas, fez fugir lua e estrelas 
e lá no alto, lá ao longe, um sino toca a rebate.
O enorme carro vermelho voa, estrada abaixo, 
num coro de luzes azuis e guinchos estridentes
leva rostos estremunhados, vozes sobressaltadas
descanso interrompido de um sono apressado.
Nas casas que ficam para trás, pelas ruas da vila,
as janelas vão-se fechando numa angústia lenta
Há vultos que ficam por detrás das vidraças
espreitando a noite iluminada, numa esperança atenta
e o enorme carro vermelho, na vertigem da pressa
voa em estridentes avisos azuis, para o inferno!