19 de agosto de 2016

(D)ESCREVER

IA FAZER SETE ANOS QUANDO FIQUEI SEM AS AMÍGDALAS, 
Nessa época arrancavam-se amígdalas a torto e a direito, numa operação redentora destinada a por o mutilado a coberto de futuras inflamações na garganta e consequentes febres.
O médico mandou-me sentar num banco, numa sala às escuras, na testa uma lâmpada de mineiro, pediu-me gentilmente para abrir a boca, colocou uma espécie de anel de metal que me impediu de a fechar de novo, puxou-me a língua para fora com uma mola de fixação, introduziu-me na garganta uma pistola com duas lâminas penduradas e zás, deitei fora num vómito dolorido, duas almôndegas ensanguentadas, para um recipiente esmaltado. Devo juntar que, como em muitas ocasiões e o meu caso foi uma delas, tudo isto se passou sem anestesia.

Confesso que não recordo bem os momentos seguintes mas a minha mãe dizia que as lágrimas lhe rolavam pelo rosto num arrependimento tardio enquanto eu permaneci sentado, choramingando, a seguir com o olhar, as minhas amígdalas que eram metidas num frasco cheio de um líquido incolor.
Como a cicatrização era dolorosa e eu já sabia escrever em letra de imprensa, quando cheguei a casa, tinha um bloco de folhas brancas e uma lapiseira com o rato mickey à minha espera e, também, aquele autocarro vermelho, de dois pisos que eu tinha visto na montra de uma loja na Graça e que era igual aos nossos que eram verdes e enormes que faziam a minha alegria quando andava com o meu pai e a minha mãe, no banco da frente do primeiro andar a ver tudo de cima e ao nível das varandas dos primeiros andares dos prédios que passavam por mim nas ruas, durante a viagem, quando íamos a Sapadores visitar a minha avó.
Como o médico tinha advertido os meus pais de que iria ter uns dias seguintes algo dolorosos e que provavelmente evitaria falar muito, resolvi abusar o mais que pude da escrita e da minha mãe que na sua infinita compaixão se aprestava a satisfazer todas as vontades escritas, sempre com um sorriso carinhoso.

Mas tardava em falar(a minha mãe não sabia que eu já falava alto, comigo mesmo) com a desculpa escrita de que não conseguia, Quando voltei ao médico, uma semana depois, um atento exame à minha garganta arrancou-lhe uma exclamação positiva.
"Está excelente; a cicatrizar muito bem!"
Mas a minha mãe com a timidez que a angústia não deixou calar.
"O senhor doutor, desculpe, mas acha que o meu filho poderá ter alguma lesão na fala, nas cordas vocais, não sei....é que ele não diz nada, só uns sons, desde que foi operado." 
O médico sorriu atrás dos óculos e da lâmpada de mineiro que parecia ter sempre colada à testa.
"Não se preocupe minha senhora. O seu filho está óptimo. Ainda o vai mandar calar muitas vezes."