4 de agosto de 2017

MARLINDA, LINDA MORENA DE OLHOS DE MAR

TARIFA ERA TERRA DE PESCADORES, no sul de Espanha um areal de cabanões de madeira à vista da praia e de uma dúzia de embarcações de pescadores que eram famílias de pescadores os do povoado a umas escassas doze léguas de Los Palos de La Frontera.
MARLINDA, filha de Sertório e de Tereza, linda morena com olhos de mar, serenos mais verdes que as águas onde os homens ganhavam o pão de cada dia. 

Comemorava, nessa noite de animada festa, os quinze anos, 
já maioridade atingida com a primeira menstruação que lhe aparecera há umas semanas, para alegria da mãe que logo anunciou a Sertório a necessidade da festa.

OS VÁRIOS MANJARES trazidos pelas mulheres da aldeia não passavam agora de restos esfrangalhados e dispersos, sem ordem nem gosto, pela enorme mesa de madeira, pasto para os cães e gatos tão fartos uns quanto os outros, dos ratos e dos restos do peixe que apanhavam dos donos.
OS OLHOS DO RAPAZ alto e sorridente, traje de marinheiro e um jeito de andar com um não sei quê de bailarino, viera de Los Palos, incendiaram-se quando se cruzaram com os de Marlinda para nunca mais se despegarem dos dela e os dela dos dele, o resto da noite, perante os comentários indiscretos das velhas e os gestos de desânimo e de ressentimento dos que esperavam da homenageada os olhares que ela só tinha para aquele que viera de fora e ali aparecera vindo da terra vizinha, segundo se apurou, sem mesmo por lá ter nascido ou se lhe conhecer parente; Braulio, assim se chamava o rapaz, dezanove anos, órfão de pai e de mãe, de terra estrangeira Cuba, povoação no interior do reino de Portugal, onde não havia mar que se visse nem olhos como os de Marlinda.
DANÇARAM TANTO E SEMPRE e como acertavam bem tantos nos viras, como nos bailes mandados ou nas rodas como se fossem par de há muito conhecido. os seus corpos tocavam-se, graciosos e ardentes, nos volteios e cresciam os sussurros mas Marlinda e Braulio, alheios a tudo, vertigem de paixão ansiosa e violenta. Tanta paixão para Braulio que viera à festa só para se divertir e para Marlinda que encontrara o seu primeiro amor, não impediu que o jovem abalasse de novo para Los Palos, ainda o Sol se não levantara pois era lá que iria para a sua grande aventura!
E, QUANDO NA MANHÃ DE 4 DE AGOSTO DE 1492 a frota capitaneada por Cristóvão Colombo largou do porto rumo ao mar infinito na esperança do novo mundo Braulio levava no coração a linda morena de olhos de mar e aquele momento de intensa paixão que tiveram na praia com o testemunho da Lua e das estrelas no pano do céu.
MARLINDA ficou na praia até a manhã acordar com o olhar longínquo, onde o risco do horizonte parece estar a dividir o mundo que diziam nunca ninguém alcançara por mais que se entrasse no mar! Mas ela pareceu ver, bem dentro do mar, perto do infinito, umas velas que se moviam numa pressa de ventos fortes. Era numa dessas velas que ia o seu amor de uma noite que nunca mais veria na sua vida, mas deixara a semente. que faria crescer o seu ventre e o escândalo da desonra que a expulsariam de Tarifa por muitos anos.

Só voltaria que a viu nascer quando o seu pai já era morto e alguém lhe deixou na porta um bilhete que dizia que sua mãe estava muito doente e que queria vê-la antes de morrer.
Entrou no casebre que cheirava a fumo e a doença trazendo pela mão um menino de olhos incendiados de mar, cabelos muito pretos endemoínhados e aquele jeito leve de andar que 
tinha um não sei quê de bailarino.

Os OLHOS DE TEREZA ganharam vida e tantas lágrimas, 

tantas depois de tanta seca que se juntaram às de Marlinda que numa voz embargada de comovida alegria, disse apenas
"Perdoa-me minha querida mãe!"
E, num soluço, estendeu a mão para o menino tímido:
"Este é o teu neto. Chama-se Braulio, como o pai dele"
E a velha mãe recebeu os dois nos seus frágeis braços
que num assomo de energia e de amor, voltavam a ter a idade da força!

NOTAS FINAIS:

Passam hoje 525 anos sobre a data que marca a partida de Cristóvão Colombo, de Los Palos (actual Cádis) ao serviço dos reis católicos de Espanha, Fernando e Isabel, comando a armada que iria descobrir o novo mundo.
A história de Marlinda, imaginei-a numa probabilidade, por certo, tão longínqua como o 'risco que divide o mundo' que nunca se alcança...



3 de agosto de 2017

ÀS VEZES TEMOS DE CONTAR CARNEIROS...


MOHAMED JAMAL AL-KHALIL, Califa de Hafar al-Batin, uma fortaleza rodeada por uns milhares de casebres no norte do oceano saudita, de areias escaldantes, mas muito perto das águas amenas do golfo onde', aliás, se deslocava frequentemente com as suas dezoito belas e jovens esposas e os vinte e sete filhos e mais todos os serviçais do palácio; apesar das enormes riquezas que possuía e da vida faustosa que levava, era atreito a insónias e tinha imensa dificuldade em adormecer. 
Um dia, o seu conselheiro mais íntimo pareceu encontrar a solução - contratar um contador de histórias para o ajudar a adormecer. 
Mohamed entusiasmou-se com a ideia e logo mandou mensageiros por todo o lado à procura de algume que soubesse contar boas e compridas histórias.
Após quase três meses de intensas buscas, finalmente, o conselheiro trouxe à sua presença um velho de andrajoso que se dizia ter imensas memórias que decerto tanto agradariam ao califa e muito prazer lhe dariam em poder contribuir para o bem estar de tão ilustre pessoa.  
O velho aparecia no palácio ao cair da noite e logo se dirigia ao aposentos do califa com livros muito bem escritos e cheios de aventuras tão interessantes que lia, madrugada dentro, com o Mohamed sempre muito atento até que amanhecia e ficava mais uma noite sem 'pregar olho'.
Quase a ser despedido por não saber cumprir o acordado e mais do que isso, ameaçado pelo califa de que lhe mandaria cortar a língua pois era inútil uma vez que as suas palavras não lhe traziam o sono, o contador em aflição resolveu inventar que um mercador rico comprara duas mil ovelhas e precisava levá-las para o seu pasto mas tinha de atravessar um rio muito largo e só tinha um pequeno barco que comportava apenas quatro animais de cada vez.
O Califa precisaria, assim, de ouvir o contador de histórias contar, uma a uma, as quinhentas viagens que o mercador tinha de fazer para passar as ovelhas de uma margem para a outra e como as travessias eram contadas com tanto pormenor que a monotonia e o tédio se apoderavam dele de tal maneira que acabava por adormecer profundamente, sem nunca conhecer o fim da narrativa.
Uma noite, em que já estava preparado para ouvir mais uma travessia, movido pela curiosidade, o Califa exigiu do contador que lhe contasse o fim daquela história pois não tinha já paciência para ouvir mais travessias e podia o efeito ser contrário e não adormecer daquela vez.
O velho recusou prontamente e mesmo perante a insistência do Califa manteve a recusa e tanto que, nessa mesma noite, o Califa o mandou prender por desobediência. 
O califa desesperado por não dormir, foi ao calabouço onde estava preso o contador de histórias e mandou que torturassem o desgraçado dizendo que assim ficava pago o contrato pois também o velho com a sua recusa o deixava numa tortura sem fim. 
Então, o velho com voz débil e amargurada disse: 
- Não vale a pena mandares que me torturem, senhor, pois também eu não sei o fim da história já que também eu adormeço à sua cabeceira, todas as noites,muito antes de terminar a última viagem do barco com os últimos quatro carneiros.