31 de março de 2015

UM PÃOZINHO SEM SAL


A minha prima Maria do Rosário era assim. Um pãozinho sem sal. 
Miudinha de osso, ‘tabuita’ de engomar, magrinha de pernas e branquinha de cores, 
franjinha alourada e rala a escorregar para a testa.
e umas lentes tipo fundo de garrafa nuns olhinhos piscos e sem expressão.
Tinha uns dentes bonitos, certinhos e muito brancos, mas era raro mostrá-los
e o sorriso, um esgar indecifrável, de tão nervoso e tímido.
Se se excedia uma gargalhadinha frenética logo se recompunha, ai o rubor na face!
A esmerada educação da tia Lili teria sido um sucesso se tivesse ido para freira;
mas como não foi, tornou-a num ser cheio de ‘não faças isso que parece mal’,
‘não olhes prós rapazes que pareces uma descarada’
‘olha-me essa maneira de estar sentada’,
‘ai credo, filha, que maneira de falar’
e Rosarinho viveu uma adolescência apertada entre os guinchos da tia Lili
e as tossidelas reprovadoras do tio Chico.
Depois, perdi o contacto com os meus tios e primos.

Eles emigraram no vinte e cinco de Abril para o Brasil.
O tio parecia que tinha tido problemas lá no banco, com os comunistas.
Eu, por cá fiquei sem problemas com eles.
A minha prima Rosarinho encontrei-a, alguns anos depois!
Nem sabia que já tinha regressado.
E só a reconheci porque foi ela que me chamou quando saía de uma estação do metro.
Era Julho e estava com um bronzeado dourado que me espantou.
Cabelo longo pelos ombros com madeixas de fogo.
Um top branco minúsculo não chegava para tapar o peito (como crescera!)
e uma saia de ganga ficava acima dos joelhos, um bom palmo (que pernas!).
Calçava umas sandálias de tiras coloridas de saltos bem altos.
Quando tirou os óculos de sol deparei-me com dois olhos cinzentos esverdeados. 

Maravilhosos! 
Mentalmente fiz uma conta apressada. 
Se eu ia fazer quarenta e cinco em Novembro, então ela...trinta e seis, trinta e sete anos? ..
Ela riu-se, talvez por notar a minha cara de espanto.
Uma gargalhada exuberante que a minha tia Lili teria, de imediato, qualificado de descarada 
e ao tio Chico, provocado um engasgo de reprovação.
Também eu estava perplexo!
Conversámos durante uns quinze minutos atropelando as palavras e rindo de tudo. 
Como alio curiosidade a uma certa desfaçatez não resisti a perguntar-lhe
que era feito da Rosarinho de que eu me lembrava.
‘Ai querido, resolvi dar uma grande volta na minha vida… 
cansei-me e pronto, enchi as mamas, operei a miopia, faço solário, muito ginásio e praia...’
Quando, além disso tudo, perguntei o que fazia mais, respondeu-me a rir.
‘Agora gosto de mim… viajo muito, tenho um Alfa e um andar em Benfica, perto do Califa.’
Ah! É verdade, não se esqueceu de dizer que era 'public relations' numa agência de moda.
Tentava ainda entender toda a informação.
‘Ainda bem. Estás óptima!’, respondi
sem conseguir tirar os olhos do decote, dos olhos, dos lábios, das pernas dela.
‘Tu, também. Olha querido, gostei de ver-te, mas tenho de ir. Estou mesmo atrasada.
Voltaremos a ver-nos por aí, certamente.’, disse-me já a despedir-se.
Deu-me um beijo enorme na face e deixou-me um cartão com os contactos, na mão..
Olhei várias vezes para trás e a minha prima acenou-me,
mandou-me um beijo na palma da mão antes de desaparecer aetrás do quiosque de venda de jornais.
Quando me deitei, nessa noite, a imagem da Rosarinho regressou.
Quem havia de dizer… a Rosarinho estava um ‘pão’!

30 de março de 2015

A MORTE DA BEZERRA

Lá estás tu a pensar na morte da bezerra

A dona Vitória, velha professora da primária,
passava-me a mão leve e trémula, pela cabeça,
num gesto que nunca consegui descodificar se de censura,
se de carinhoso impulso maternal.
As minhas mãos seguravam o queixo
e os cotovelos apoiados no tampo da carteira, sustinham a cabeça
enquanto o olhar tinha passado para lá da vidraça da janela da sala
projetando-se num horizonte translúcido, para lá do infinito.

Lá estás tu a pensar na morte da bezerra…

Quem pensava na morte da bezerra era o filho de Absalão,
um hebreu qualquer, que depois de ter sacrificado  todos os seus bezerros,
só possuía uma bezerra que aliás dera de presente, um dia, ao filho.
O rapaz, ao saber que o pai tencionava sacrificar o animal,
a quem ganhara uma grande estima, quis opor-se,
mas Absalão matou a bezerra na mesma.
Ele então sentou-se, ao lado do altar, sem comer nem beber
e assim ficou imóvel até morrer meses depois.

Lá estás tu a pensar na morte da bezerra...

Ainda hoje, parece-me ouvir a voz da velha senhora.
Sinto-lhe a mão a passar, leve e trémula, sobre a cabeça
quando apoio os cotovelos na mesa, para manter a cabeça direita
ponho as mãos por debaixo do queixo
e deixo o olhar vaguear pelo horizonte longe, longe, ao fim do infinito.
Não, não estou a pensar na morte da bezerra
Nem tão pouco no Absalão ou no seu desgostado filho
Se fosse um equipamento elétrico qualquer
teria decerto, uma luzinha vermelha num sítio, à vista.
Sempre gostei de estar, apenas, parado por momentos
A pensar que estou a pensar em nada.

Em modo de espera fica tudo tão (mais) calmo…  

28 de março de 2015

REPRINCÍPIOS

Já pouco falamos. Para quê?
Parece que quanto mais falamos, um com o outro,
mais nos magoamos, um ao outro.
Sinceramente nunca imaginei que isto nos acontecesse, 
pricipalmente porque chegámos juntos, até aqui,
e andámos tanto, tanto e sempre fomos andando.
Mas, nas nossas cabeças é a ameaça que paira
a opinião inócua que se transforma, de imediato, na guerra de palavras,  
Parece que tudo começa a correr mal,
que é preferível não falar, não olhar, não tocar, não estar
e sem darmos conta, instala-se esse silêncio absurdo,
essa irritação surda, esse desconforto mudo, 
como alguém que anda em palmilhas de meias, pela casa, 
apenas para que não se dê pela sua presença num deslizar magoado e frio.
O que faço aqui? O que fazes aqui? O que fazemos aqui?
Juntos? Ah! Ainda estamos juntos?!
Pelo menos, ainda comemos à mesma mesa
dormimos na mesma cama,
sentamo-nos ao lado um do outro, no sofá e no automóvel.
O princípio das coisas é diferente..
Chamem-lhe 'luas de mel', 'encantamentos da novidade',
'estados de graça' , 'deslumbramentos da paixão', sei lá mais o quê.
Mas, o princípio das coisas não é coisa simples de ser
É como comer um pastel de nata, em jejum.
A não ser que se coma de uma só vez...
só a primeira dentada é que é em jejum.
O princípio. Talvez nem haja um princípio de nada
e afinal tudo a que chamamos princípio seja, apenas,
uma espécie de cortina que abrimos num mesmo palco, 
para uma representação diferente, menos conhecida,
um refazer de história feita.
mas sempre com o espectáculo em andamento.
Se calhar, poderíamos tentar um reprincípio...
Eu gosto de reprincípios.

20 de março de 2015

TENHO SAUDADES TUAS, PAI

Tenho saudades tuas, pai.
Até dos tempos que só é possível recordar, anos depois,
porque alguém nos conta o que aconteceu,
Aparecias ao fundo do corredor, chegado do trabalho ao fim da tarde,
eu punha-me a gatinhar numa marcha rápida e atrapalhada,
acompanhada de sons guturais para sinalizar a minha alegria.
esperando que tu, enorme à minha frente, me tirasses do chão
depois de dares o beijo na mãe. "Então, rapaz, como foi o teu dia?"
Apertavas-me a cintura e agitavas-me entre as mãos.
Eu acho que te respondia com uma risada, meio nervosa,
não sei se satisfeito com a vida, se das cócegas.
Levavas-me ao colo, até ao quarto, mudavas de roupa,
comigo a observar-te, sentado na cama grande,
onde eu acordava, durante a noite, entre ti e a mãe,
nalguma noite que assim decidiam, sei lá eu porquê;
porque eu gostaria de dormir todas as noites
assim na cama grande, entre os dois.
Já de pijama, mais confortável, voltavas a pegar em mim
numa excursão até à sala, enquanto a mãe acabava de preparar o jantar,
e ficávamos na varanda, a vermos os carros na avenida.
sempre para cima e para baixo e o polícia sinaleiro, no cruzamento das escolas,
numa espécie de dança, em cima do estrado. de vez em quando, o som estridente do apito,
as luvas muito brancas e o capacete também branco, um maestro do transito.
Eu apontava para tudo em movimento, os carros maioritariamente pretos,
embora alguns de cores que não sabia e que tu quase me segredavas.
Este azul escuro; aquele ali grená; o táxi da capota verde claro.
De vez em quando agitava-me ao teu colo numa admiração
"Ohhhhhhhhhhhhhhhhh!", prolongava eu, de propósito, para que me prestasses atenção,
e lá vinha outra vez o carro grande e amarelo
com tantas pessoas, algumas até penduradas de fora
e com aquela vassoura no tejadilho que ao tocar nuns fios,
fazia rebentar, de vez em quando, umas estrelas azuladas como as do céu.
"O eléctrico...." acho que era isso que me dizias.
A senhora da leitaria, em frente, acenava da porta "diz adeus à dona Palmira!"
e eu dizia com a mão pequenina muito aberta e tu abanavas o meu braço.
Depois ouvíamos a voz da mãe: "Jantar na mesa!"
Às vezes adormecia à mesa enquanto tu e a mãe conversavam,
sobre coisas que eu não entendia.
A surpresa de acordar, mais tarde, na vossa cama?
Entre os dois? Como eu gostaria?
Não sabia! Se calhar tu e a mãe, também não sabiam...ainda não.

18 de março de 2015

TEMPO NÃO É DINHEIRO


Alguém inventou a frase: 'tempo é dinheiro'
para que se trabalhe mais depressa
se ande mais depressa
se descanse mais depressa
se coma mais depressa
para que tudo se faça mais depressa
mesmo que muita coisa, não tenha pressa de ser feita.
Porque não aproveitar o tempo é uma inutilidade
E perder dinheiro, uma calamidade!

Mas, tempo vale muito mais que dinheiro
É o que se tem, de mais precioso, para se gastar.
Aproveitar o tempo não é fazer tudo mais depressa
mas fazer no tempo em que deve ser feito
e cada coisa tem o seu tempo para ser feita,
sem pressa, nem vagar,

Quando se morre, fica-se sempre a mesma idade.
como se o nosso tempo tivesse parado no tempo.
E é então que percebemos
que por mais depressa que tudo tivessemos feito
continua sempre muito por fazer
e não há dinheiro que compre o tempo que falta

O TEMPO NÃO CURA TUDO


O tempo não cura tudo.
Aliás, o tempo nunca cura nada!
O tempo, apenas, tira o incurável do centro das atenções.

16 de março de 2015

TUDO TEM UM MEIO

Olhei o calendário. Segunda feira dezasseis.
O mês já passou de meio, tão depressa.
Os dias continuam a ter vinte e quatro horas
para o tempo não há demoras,
e a vida vai numa pressa.
O meio para ser meio tem de ser mesmo ao meio,
Tudo tem um meio. Até a vida!
Embora desse, apenas se saiba onde ficou,
quando se morre.

14 de março de 2015

SÁBADO PRIMAVERA

Nos tempos em que a Primavera chegava sempre a horas,
o Sol brilhava no intensamente azul
as árvores voltavam a vestir-se numa pressa esverdeada 
a passarada, numa agitação de pequenos gritos,
invadia campos de corolas confundindo cores e formas
havia uma sinfonia de sons alegres e tons mornos
que abria sorrisos felizes no rosto de toda a gente.
O barco era enorme e levava tanta gente,

'Almadense', disse o meu pai e pegou-me ao colo
junto à amurada para eu ver tudo melhor
enquanto a minha mãe lhe dava o braço.
E eu senti a mão dela, discreta e firme, a ter-me pelos calções
não fosse eu borda fora, num qualquer impulso de entusiasmo.
Havia tantas coisas para ver, ao mesmo tempo!
O Cristo Rei lá bem no alto do monte, de braços abertos,
as gaivotas nos seus voos circulares, barulhentos, em volta das fragatas,
o bando de golfinhos no seu nadar de onda, suavemente,
as pessoas que acenavam às do barco que passava em frente
a cidade que se afastava, à medida que a outra margem ia chegando.
'Cacilhas' apontou o meu pai, um amontoado de casas baixas

que se erguia à frente; e eu apontei também sem dizer nada.
O barco apitou estridente, uma, duas, três vezes, 

à chegada a azáfama dos marinheiros em manobras
agora a atarem o barco ao cais.
Já em terra firme, perguntou-me o meu pai: 'Então gostaste?"
E, eu disse que sim, com a cabeça, ainda a olhar para trás
para o barco outra vez enorme com tanta gente
para as gaivotas lá 
ao longe e para os golfinhos desaparecidos
certamente, agora acompanhando outro barco.
Chegava a hora do almoço.

Fomos ao que tinha uma grande varanda, toda aberta, para o cais!
Mas a travessia do Tejo é que tinha valido. Uma aventura. 

Um sábado diferente.