27 de maio de 2015

UMA CERVEJA ÀS TRÊS TABELAS

No bilhar, como na cerveja e nos tremoços, Micá era o maior do bairro.
A arte da carambola fora o tio Gilberto que ensinou. O saudoso Giló.
Chegou a campeão nacional de três tabelas Só uma vez, é verdade.
O bastante para se tornar a estrela do bairro.
Camisa imaculadamente branca e impecavelmente engomada,
‘papillon’ preto com pintas brancas a fechar o colarinho alto,
colete cor de vinho com emblema do clube no ombro esquerdo
calça cinza bem vincada e sapatos pretos, um espelho de verniz.
Gentil e educado no falar. Mestre a ensinar. Elegância de bailarino a jogar.
Quando se esticava em cima do pano verde, perna flectida na borda da mesa
bigode fininho expressivo e olhar de águia na ponta do taco.
A pancada era tão delicada que as bolas ganhavam vida, 
corriam pelo pano, numa valsa a três enquanto Giló se perfilava, 
taco na mão. ao lado da mesa como soldado da guarda do palácio real. 
Eternizá-lo em pintura seria mais que merecido.
Micá não tinha a elegância do tio. Perdia-se em floreados e fantasias, 
sem a humildade, nem a discrição de Giló, garantiam os que o conheceram.
Gabarola? Não é defeito, é feitio, desculpavam-no por sua vez os adeptos.
Micá detestava comparações e muito principalmente com o seu mestre.
Cada qual no seu lugar…’ respondia, sem humor quando ouvia conversas.
Micá nunca se limitava a fazer carambola. Explicava sempre os efeitos,
a quantidade de bola a apanhar, uma, duas ou mais tabelas antes da final.
Às vezes até pedia. “Digam lá como querem esta…”.E, alguém dizia.
Agradecia, no fim, os aplausos entusiásticos dos amigos e dos outros.
Já na parte de despachar cervejas e tremoços não se lhe conhecia o mentor.
Quando lhe perguntavam de onde lhe vinha o gosto, encolhia os ombros.
“Vocês sabem como é, tremoços dão-me sorte mas fazem-me imensa sede”.
Então bebia sempre duas ou três canecas, antes de começar os tremoços,
que depois parecia saborear, um por um, antes de se decidir pela tacada.
Micá treinava, todas as tardes, no clube, o único do bairro com mesa de bilhar.
Entrava, cumprimentava os presentes e o Justo, ao balcão numa urgência.
A caneca cheia de cerveja no topo um anel de espuma e o pires com tremoços.
O bilhar de profissional, impecavelmente nivelado, mesa de seis pernas. 
Tabelas aquecidas. Pano novo. Bolas de marfim. O taco do Micá, claro.
Nessa tarde parou tudo quando ele entrou; parou o gupo do jogo dos matrecos
Parou a mesa da sueca dos irmãos Solidó; parou o Anhuca, a ‘solitaire’
parou o Manel Zarolho que jogava setas; parou o Justo atrás do balcão.
Micá também parou perante o inusitado silêncio, tentando adivinhar o insólito.
Sentado num banco alto, ao balcão, a acabar a bagaceira, estava o homem
a balançar as pernas com um sorriso de orelha a orelha. Micá teve um arrepio. 
Não foi só a vestimenta que o impressionou. Foi aquele bigodinho risonho
e o olhar de águia que lhe fez ver ali o tio. Cruzes credo! Pensou Micá.
O tio Giló já morrera há cinco anos, na Páscoa. Mas aquele…quem era?
‘Anacleto Mão Firme.’, e estendeu a mão para um aperto, firme.
Começaria na próxima semana. Micá aceitaria ser cabeça de cartaz?
Ora essa seria uma honra! Na Sociedade Filarmónica Trompete de Ouro.
‘E, quando posso ir treinar na mesa? perguntou Micá já a antecipar o ‘show’.
O outro, num repente de surpreso. A mesa? 
Micá julgou o outro demasiado ignorante. ‘Sim, a mesa…então o bilhar…
Anacleto, relâmpago no olhar de águia, agitação no bigodinho inquieto. 
Estremeceu. 
‘Ah, peço desculpa. Julguei que sabia. O festival é de cerveja...
e a juntar timidamente. 
"Para si, providenciámos uns pratinhos com tremoços..."

25 de maio de 2015

ARGENTINA DOS OLHOS VERDES

Argentina chegou de Rápido a Santa Apolónia, no fim de uma tarde de Março.
Apanhou o comboio em Campanhã, depois de três horas de viagem
no carro de aluguer do senhor Luís, ainda o Sol espreguiçava um lento acordar
Em quinze anos de vida, esta era a segunda vez que saía de Ponte de Lima.
Aos doze fora com a mãe, ver um tio que estava doente, perto de Braga.
Dona Aurélia, tia do Raul, mandara mais do que o necessário para a viagem.
Residia num segundo andar de sete assoalhadas, fachada em amarelo
com torcidos e tremidos de gesso a encimar janelas de portadas altas e largas
e amplas varandas elípticas com as guardas trabalhadas em ferro forjado,
uma arquitectura eclética vagamente arte nova semeada pelas avenidas novas, 
a zona nobre da capital iniciada no começo da década de trinta.
Argentina despedira-se, abraçada à mãe e aos cinco irmãos, todos mais novos,
como se fosse um adeus definitivo e o seu destino fosse o fim do mundo..
O pai nada disse mas ela julgou ver uma lágrima rebelde no seu olhar cansado.   
Argentina chegou com uma mala velha que se mantinha fechada com um cinto 
e um saco de lona atado com uma corda cheio de laranjas, maçãs e um queijo.
Tudo para dona Aurélia e para o menino Raul. o sobrinho que chamava carinhosamente ‘Titi’.
A miúda, dizia o Raul apesar de ser mais nova do que ele apenas três anos,
teve imensa sorte em vir para Lisboa fazer companhia à 'Titi'.
Aprenderia boas maneiras, arranjava um namorico com um tropa, casava,
ia para porteira num dos prédios da ‘titi’, tinham dois ou três filhos. Pronto!
Porra. Nem a deixas escolher, dizia eu, divertido com um futuro tão definitivo.
Conheci a Argentina numa noite em que fui buscar o Raul para irmos ao cinema.
A descrição que ele me tinha feito da moça não fazia justiça à sua beleza.
Morena, cabelo preto ondulado, rosto redondo perfeito, um sorriso encantador
e um par de holofotes verdes a substituírem os olhos. Tinha uma silhueta esguia e os seios – impossível não reparar- a rebentarem os botões a uma blusa rosa.
Lá fomos ao cinema, depois do beijinho na testa da Titi e de ouvirmos desta,
“não venhas tarde, Raul” e “cuidado meninos… não andem por aí perdidos”.
O Raul, ‘Ó Titi, credo!’ e eu ‘Boa noite, dona Aurélia. Vamos ter cuidado, claro’.
Argentina foi acompanhar-nos à porta, sorriu para mim, antes de a fechar
e aquele sorriso andou comigo toda a noite. E, no escuro da sala, os olhos.
“Que olhos, pá. E o sorriso. Tu já tinhas reparado no sorriso? Lindo!”
Raul gargalhava trocista. ‘Deu-te cá uma pancada!”.
Mas a vida tem curvas que não estão assinaladas à partida. Três meses.
Foi quanto durou a estada de Argentina na capital. Um telefonema trágico.
A mãe falecera de um ataque e o pai sozinho com os cinco filhos.
Argentina despediu-se num choro convulsivo, agarrada à Titi e madrinha.
Um aceno triste e tímido para o Raul e lá foi, percurso inverso
do que fizera também triste, três meses antes.
Raul nunca disse nada mais nem quando eu o provocava.
Encolhia os ombros e limitava-se a um lacónico: ‘Arranja-se outra…”.
Depois, a vida deu voltas, curvas não sinalizadas.
Encontrei o João Abreu na Mexicana. Não o via há imenso tempo.
Foi ele que me viu. Abraço apertado. Grande festa. O que é que tens feito?
Aquelas coisas. Recordações. Por onde andam os gajos do grupo?
Este está assim. Aquele assado. O outro lá vai indo. Mais ou menos…
“Ah, não sabes? A tia do Raul morreu há dois anos, já. O Raul sei...
Esteve em Lourenço Marques; veio há uns três anos e tal.
Foi para Ponte de Lima, dar aulas. Português e História, acho que é isso.”
Faço um gesto de admiração enquanto comento o regresso à origem.
“Ah, é verdade! Fui ao casamento dele, no ano passado.”
“Ena! O Raul? Quem diria. Sempre o vi tão independente….e quem é?”
O João Abreu teve um sorriso como que a antecipar o meu espanto.
“Então espanta-te lá! Lembras-te da Argentina que veio fazer companhia…”
Não o deixei acabar. “Então não sei. A não me digas que…”
“Pois. Foi para lá e olha…casou-se com ela! Parece que vai ser pai”
Trocámos números de telefone. Abraço de despedida. Gostei de te ver.
E, enquanto descia a Guerra Junqueiro, pensava nas palavras do Raul.
Cheia de sorte, aprendia as boas maneiras, namoriscava com um tropa,
ia para porteira de um dos prédios da ‘Titi’, casava e tinham filhos.
Ó Raul, meu amigo, a vida tem tantas curvas que não estão assinaladas.  

20 de maio de 2015

SÓ NÃO ME LEVEM O CÃO


Primeiro, o governo roubou-me a pensão.
Depois carregou-me de impostos,
invadiu-me a carteira.
veio o banco e levou o resto, até o último tostão
Tenho ordem de despejo, sem água para a banheira
Sem gás para a chaleira, sem luz para a televisão
sem dinheiro para um desejo.
Agora invadem-me a casa; ainda tenho que pagar
as dívidas do que sobrar.

Levem tudo. Mas deixem-me em paz. De vez.
Levem os móveis, os candeeiros,
Levem a cama e o colchão.
Levem livros, dicionários
molduras e retratos, estantes e armários,
levem também os sanitários.
Levem o gira-discos e o rádio;
já agora a televisão.
Levem a mesa e as cadeiras, sofá.
pratos e travessas; os talheres.
Levem a gaiola e o periquito.
Levem a despensa e o frigorífico;
e já agora o fogão.
Levem a roupa que lhes servir, as toalhas do bidé
Levem lençóis, mantas, cobertores
arranquem a alcatifa mais a porta de entrada
que não é precisa para nada.
E o banco em que me sento a ver a devastação
Levem tudo que quiserem. Já me levaram a alma.
Só não me levem o cão!
Está velho como eu. Nem sei como ainda não morreu.
Cheira mal da boca e tem o pelo a cair.
Coxeia da pata esquerda e passa o tempo a ganir.
Mas é melhor que todos vocês.
Fosse ele novo e eu também
aqui não entrava ninguém
Muito menos ladrão.
Só não me levem o cão…

Ou levem–me a mim também
Antes que mate alguém…

O DIABO ESTEJA A REZAR


“O diabo esteja a rezar enquanto o Carlos não chegar.”

Nunca gostei da noite. 
Quando começa a escurecer, sinto-me mais só. Tenho arrepios,
Os prédios são paredes pardas, apenas, salteadas de pequenas luzes,
as árvores transformam-se em monstros de grandes cabeças, 
os carros não passam de pirilampos em corrida
e as pessoas deslizam como sombras. 
Até que deixa de haver pessoas na rua
e tudo fica deserto, num silêncio de cemitério.

Nunca gostei da noite. 
E tu que sabes disso nunca apareces para jantar.
às vezes nem para dormir
e eu fico aqui, à janela, nesta agonia, 
até ser dia.

“O diabo esteja a rezar enquanto o Carlos não chegar”

A minha mãe é que me ensinou. 
Punha-se à janela, eu muito pequenina, ao colo.
E dizia, e repetia e repetia e repetia, não Carlos 
mas Joaquim, que era o nome de meu pai. 
O resto, igual.
E, depois de algum tempo, o meu pai aparecia, a sorrir, 
a minha mãe corria a abrir-lhe a porta, 
a escancarar-lhe o coração, 
a beijar-lhe a boca e as faces de alegria.

Nunca gostei da noite. 
E tu que sabes disso, nunca apareces para jantar
e eu não posso correr a abrir-te a porta, 
nem escancarar-te o coração de alegria.
nem beijar-te de tanto te amar.

“O diabo esteja a rezar enquanto o Carlos não chegar”.

Nunca mais chegas. Melhor assim.
Ai de mim.
Desconsideraste o meu coração.
Desprezaste o meu amor.
Nunca quiseste o meu beijo.
Tarde demais.Escusas de aparecer outra vez .
Ai de mim.
Os prédios defronte, continuam lá, paredes coloridas
As árvores do jardim com as copas fartas de verde..
Os carros na rua, devagar, numa fila interminável. 
As pessoas nos passeios fazem-me companhia.
Ainda é dia.
E tu chegas sempre. Nunca demoras, 
Sempre a horas
Sorrindo, quando te abro a porta
Te escancare o coração numa alegria
te beijo sôfrega de amor. 
Uma orgia. 

Não é noite nem há dor
apenas este meu temor...

“O diabo esteja a rezar enquanto o João não chegar”.

19 de maio de 2015

CARTA ABERTA À DIREITA

Direita,

Escrever-te é dizer-te o nome
desenhar-te o perfil,
abrir-te o rosto, destapar-te a fome
de rasgares do calendário o mês de Abril.

Escrever-te é arrancar-te a máscara inocente
silhueta branca de pomba
e mostrar-te nua, repelente,
tal como és feita de ódio, sangue e bomba.

Escrever-te é situar-te a traição
de cavalo de pau entre muralhas,
das calúnias nos jornais, propositadas gralhas,
gritar-te a falsidade do teu pão
do qual nos deixas apenas migalhas
e a violência fria das navalhas.

Escrever-te é ver-te entre nós, de regresso,
sempre mascarada de progresso
democracia e liberdade nas bandeiras
paz na boca, bombas nas algibeiras.
A esquerda estaremos nós, corpo e voz
com redobrado querer, cerradas as fileiras

Não só porque lutamos por nós
mas porque não te queremos, a ti.

( Premiado com o 3º lugar dos I Jogos Florais organizados pelo STCML Sindicato dos Trabalhadores da Câmara Municipal de Lisboa, 1979 ) 

18 de maio de 2015

DINHEIRO NÃO DÁ FELICIDADE MAS ACALMA OS NERVOS


"A minha Paulinha, coitadinha, é muito dada a depressões".
A senhora mastigava o palito da torrada e bebericava o chá
enquanto a amiga lutava com o chantilly do duchesse a escorrer baton.
Apertou o antebraço da amiga do duchesse a quem tratava por ‘minha flor’.
‘A minha flor conhece os Queirós Mendes?’ A flor abanou a corola. Que não.
‘Pois minha querida, família muito boa sabe, prédios por todo o lado, 
propriedades no Ribatejo, vivenda em Alcabideche que só queria que visse. 
Um mundo minha flor, um mundo...mas dizia eu, 
a Paulinha e o Tomás namoravam há dois anos, 
e não é que o rapaz, um doidivanas já se vê, 
encanta-se por uma tal Jessica, que me perdoe Deus Nosso Senhor,
mas parece que se despia num bar, uma libertina qualquer
que ele encontrou na noite, e pronto, a minha Paulinha coitadinha
que é muito nervosa, nem lhe digo nada, fechou-se em casa,
mais fechada que freira de clausura não comia nada, não sorria,
todo o dia na cama, só falava em morrer..também coisa assim, já se vê. 
Trocada por uma pu.., Deus me perdoe.”
A corola assentia com ar escandalizado enquanto espetava o duchesse.
“Fomos com ela ao professor Névoas, conhece minha flor?
Grande neurologista. Gastámos rios de dinheiro… e nada.
Cada vez pior. Um desespero. Chegava da consulta e não queria voltar.
Eu pedi tanto a Nossa Senhora do Rosário de quem sou devota,
Velas em todos os altares, até chegámos a pensar, a minha irmã e eu,
num senhor padre que faz exorcismos mas o meu marido passou-se, 
Que a menina não estava nada disso que nós estávamos a dizer,
que estava só triste e nervosa. Julguei que ele até enfartasse, sei lá.
Então a Paulinha disse que o que lhe estava a apetecer, era um cruzeiro,
Eu detesto barcos mas o que é que não fazemos pelos filhos. 
A flor assentiu curiosa e o garfo cravou o último bocado de duchesse.
e a outra fazia uma pausa com mais uns golitos de chá.
Ficámos todos logo em cuidados mas o que é que havíamos de fazer…
acabámos por a convencer a ir num cruzeiro às ilhas gregas, seis dias,
Ainda quisemos ir com ela mas ela que não, que não. Lá foi sozinha. 
A outra a abanar a corola; "como é que a Paulinha não ficaria curada".
a limpar-se ao triângulo de papel branco, vermelho de impressões labiais.
"Lá voltou, tudo muito bonito, tudo muito bom, comprou imensas coisas,
roupa, coisas para mim e para o pai, coitadinha, um bocadinho melhor..
Apaixonou-se pelo 'personal trainer' lá do ginásio do barco, veja lá.
Mas, não é que o rapaz era casado e a mulher ia com ele. Um azar! 
A outra tapou a boca com os anéis que tinha na vez dos dedos.
sem poder conter um gritinho: “Ah. Credo..mas, e ficou melhor?."
“Infelizmente não, minha flor! Chegou, começou outra vez a definhar.
Saiu com umas amigas, cinema, compras, jantares, chegava às tantas,.."
A flor mastigava o duchesse na expectativa e a amiga em tom de censura.
"Voltar ao médico é que nunca mais, veja lá a minha flor.. 
apetecia-lhe era viajar. Nova Iorque, Paris, Madrid, duas vezes! 
Só compras…passado umas semanas voltava ao mesmo…fim de ano na Madeira
E a corola agitava-se: “E nada? Sempre os nervos?” 
“Pois. Sempre muito nervosa, muito nervosa e tristinha, coitadinha.,
Demos-lhe um carro, quando fez anos, dos que estacionam sozinhos e tudo,”
A corola num aparte: "O que nós não fazemos pelos nossos filhos.."
A outra calorosa. “Verdade! Mas, Graças a Nossa Senhor do Rosário!
E olhou para o tecto da pastelaria ao mesmo tempo que juntava as mãos. 
No mês passado, apeteceu-lhe ir até Londres. Foi assim de repente.
quem está lá é a Teresinha, a minha flor conhece, é a enfermeira
A flor assentiu com a corola risonha por finalmente conhecer alguém.
“Muito boa menina. Mas teve de emigrar porque precisava de trabalho.”
"Pois foi, coitadinha: Olhe que aquilo foi deprimente.
Todos as chorarem, ela, os pais e o namorado, a despedirem-se na Portela
aqueles pais que tanto sacrificio fizeram para ela tirar o curso. 
E a corola numa sombra "O que nós não fazemos pelos nossos filhos..":
A mãe da Paulinha a fazer sinal ao empregado para trazer a conta.
“Pois minha flor, vai a Londres, e não é que encontra o Tomás, em Picadilly?
A flor desabrochou no espanto enquanto a outra rematava em triunfo.
“Houve aqui dedo de Nossa Senhora do Rosário, só pode.
Foi engraçadíssimo! Olhe, ainda lá estão os dois, muito felizes.
O Tomás é um optimo rapaz, O pai dele é que paga tudo, já se vê.
Nós também depositamos todos os meses mil euros
Para os alfinetes da minha Paulinha, já se vê.
A flor ia perguntar pela tal que se despia no bar. Não precisou.
Ah! A tal Jessica? Uma maluca, claro. Depois de lhe chupar a carteira…
fartou-se…desapareceu com um turco, segundo parece.
Deixou o rapaz com uma depressão que só lhe digo. Por isso Londres.
A flor e a amiga despediam-se já na porta da pastelaria.
“Minha flor, foi um gosto imenso. Eu venho sempre aqui às quartas, 
antes de ir ao ginásio…hoje, vou ao Corte Inglês. Umas compritas.
Não sei porquê ultimamente tenho andado tão nervosa!
A flor ficou no passeio a receber dois beijinhos na corola, 
a pensar que ter dinheiro pode não dar felicidade 
mas, pelo menos, parece que acalma os nervos.


15 de maio de 2015

CRONICA DE UM ESCÂNDALO ANUNCIADO


Começou há cerca de um mês. Por volta das cinco da tarde
Às quartas e sextas-feiras. Aparece do lado da Igreja.
Desce os degraus da escadaria, atravessa a rua num passo de soldado russo, 
cabelo ruivo pelo meio das costas, mais rebelde que nunca;
senta-se a uma mesa na esplanada, manda vir um sumo natural
nunca tira os óculos escuros, vai desfolhando sem interesse
as páginas duma revista cor-de-rosa carregada de fotos e de escândalos.
Impossível não se reparar nela. Espreita-se a novidade.
À porta da loja dos tapetes. Na ourivesaria. Na estação dos Correios. 
No armazém do chinês. Na venda de jornais. Na farmácia.
Vejo-a da janela do escritório que dá para o largo.
A esplanada da Casa Portuguesa é mesmo defronte.
Mais ou menos um quarto de hora depois, o homem do mercedes,
Passou a meia idade na careca, atarracado, ar de construtor civil
camisa branca colarinho aberto e gravata meio enrolada
com a ponta a fazer cócegas no estômago saliente.
Senta-se, espalhafatoso; lança-lhe um beijo com a palma da mão
Ela limita-se a sorrir em amarelo e ele fala alto para a altura que tem.
arrasta a cadeira para mais perto dela e fala, fala e fala,
e gesticula enquanto fala, as mãos sapudas agitam o ar
com o cachucho que brilha áureo e enorme no dedo grosso esquerdo .
Bebe o café, paga e vão os dois até ao mercedes.
Ele tenta o braço na cintura; ela apressa o passo, a evitar-lhe o desejo.
Entram e ficam mais uns minutos, os dois, em conversa antes de partirem.
Ontem, perguntei ao senhor Mateus (o dono da casa) o que era aquilo.
Ele riu-se e encolheu os ombros magros num trejeito inocente
Pai? Pois... até podia, não é? Mas não sei, acredite que não sei.
Brasileira e um mulherão. Isso eu sei. Pois, senhor Mateus. nota-se…
Hoje é sexta, o dia está em brasa e no largo o calor abafa.
Ela aparece. Mal cabe num vestidinho de alças azul forte,
demasiado acanhado mas com decote generoso,
destapa-lhe as pernas até às coxas, areja-lhe o peito até ao umbigo.
O careca hoje vai passar-se, penso eu. Fico à janela curioso.
Nisto toca o telemóvel e ela atende de imediato. Ouve atentamente.
De repente levanta-se e gesticula como se o outro a estivesse a ver.
Olha para um lado e para o outro. Os óculos escuros em pânico.
Só então reparo na mulher gorda que salta da mesa ao lado,
na direcção dela e prega-lhe uma bofetada tão potente que faz cambalear 
o vestidinho de alças tropeça no bordo do passeio e quase cai,
parte o salto à sandália, atropela a cadeira da última mesa
dás uns gritinhos alarmados quando surge o do mercedes.
Por momentos penso. Acabou-se. Foste apanhado pela mulher.
Resolvam o resto em casa. Engano-me! 
A ruiva volta atrás, com o sapato ainda inteiro, em riste.
A gritaria junta a curiosidade. À porta da loja dos tapetes. Na ourivesaria.
Na estação dos Correios. No armazém do chinês. Na venda de jornais.
Num ápice o mundo desagua na praça.
É então que a mulher gorda lança as mãos aos cabelos da ruiva
e zás, num supremo impulso, fica com a cabeleira ruiva nas mãos
ao mesmo tempo que a ruiva histérica agora sem extensões, 
grita falsetes e jura vinganças de dedo espetado.
O homem visivelmente atrapalhado é agora perseguido pela mulher
em direcção ao mercedes, que de cabeleira ruiva nas mãos grita-lhe:
“Nunca te perdoarei meu grande porco! Ao menos tivesses-me traído com uma mulher!
Com um mulherão, penso eu.
E não consigo parar de sorrir, enquanto fecho a janela.

14 de maio de 2015

A ESPERA QUE A CRONICA CHEGUE


A casa está quieta há algum tempo.
A sala embrulhada no silêncio da noite,
Nas estantes, filas compactas de lombadas coloridas
parecem empurrar das prateleiras, molduras das fotos de família
e os objectos que complementam todo o acervo de memórias.
Ao longe, oiço a voz do Bryan Ferry, os sons dos Roxy Music.
‘Avalon’, a balada que evoca a lendária ilha dos tempos do rei Artur
e onde terá sido forjada Excalibur, a espada magnífica.
Recorda a locutora que foi o último álbum do grupo.
Maio de 1982? Ainda hoje gosto de os ouvir.
Vou atrás dela. Volto atrás no tempo.
Comprei a cassete em Sesimbra numa daquelas tendas de feira
o homem agarrado ao funil a soprar os nomes dos maiores êxitos,
em altos berros, as músicas a saltarem no meio do reboliço geral.
Cassete que hoje deve estar algures nalguma caixa de sapatos
talvez na garagem, juntamente com todas as outras peças de museu
juntamente com todas as outras coisas que depois de perderem utilidade
nunca perdem o sentido da sua existência.
Anos oitenta… foi um tempo em que conseguimos ser felizes.
Tínhamos trabalho. Tínhamos casa. Tínhamos filhos. Tínhamos futuro.
Éramos jovens e sorríamos à vida. Parecia tão mais fácil que hoje...
Andamos todos a precisar de uma ilha mágica e de uma espada mágica
que nos renove a esperança e o sentido de justiça.
Vou continuar, por mais uns momentos, neste cadeirão
nesta sala embrulhada no silêncio da noite,
entre estantes, prateleiras, livros, fotos e memórias
à espera que a crónica chegue.