Começou há cerca de um mês. Por volta das cinco
da tarde
Às quartas e sextas-feiras. Aparece do lado da
Igreja.
Desce os degraus da escadaria, atravessa
a rua num passo de soldado russo,
cabelo ruivo pelo meio das costas, mais rebelde que nunca;
cabelo ruivo pelo meio das costas, mais rebelde que nunca;
senta-se a uma mesa na esplanada, manda vir um sumo
natural
nunca tira os óculos escuros, vai desfolhando
sem interesse
as páginas duma revista cor-de-rosa carregada
de fotos e de escândalos.
Impossível não se reparar nela. Espreita-se a novidade.
À porta da loja dos tapetes. Na ourivesaria. Na estação dos Correios.
No armazém do chinês. Na venda de jornais. Na farmácia.
No armazém do chinês. Na venda de jornais. Na farmácia.
Vejo-a da janela do escritório que
dá para o largo.
A esplanada da Casa Portuguesa é mesmo defronte.
Mais ou menos um quarto de hora depois, o
homem do mercedes,
Passou a meia idade na careca, atarracado,
ar de construtor civil
camisa branca colarinho aberto e gravata meio
enrolada
com a ponta a fazer cócegas no estômago saliente.
Senta-se, espalhafatoso; lança-lhe um beijo
com a palma da mão
Ela limita-se a sorrir em amarelo e ele fala
alto para a altura que tem.
arrasta a cadeira para mais perto dela e fala,
fala e fala,
e gesticula enquanto fala, as mãos sapudas agitam
o ar
com o cachucho que brilha áureo e enorme no dedo grosso
esquerdo .
Bebe o café, paga e vão os dois até ao mercedes.
Ele tenta o braço na cintura; ela apressa o
passo, a evitar-lhe o desejo.
Entram e ficam mais uns minutos, os dois, em conversa
antes de partirem.
Ontem, perguntei ao senhor Mateus (o dono da
casa) o que era aquilo.
Ele riu-se e encolheu os ombros magros num
trejeito inocente
Pai? Pois... até podia, não é? Mas não sei,
acredite que não sei.
Brasileira e um mulherão. Isso eu sei. Pois, senhor Mateus. nota-se…
Hoje é sexta, o dia está em brasa e no largo o calor abafa.
Ela aparece. Mal cabe num vestidinho de alças azul forte,
demasiado acanhado mas com decote generoso,
destapa-lhe as pernas até às coxas, areja-lhe o peito
até ao umbigo.
O careca hoje vai passar-se, penso eu. Fico à janela curioso.
Nisto toca o telemóvel e ela atende de imediato. Ouve
atentamente.
De repente levanta-se e gesticula como se o
outro a estivesse a ver.
Olha para um lado e para o outro. Os óculos
escuros em pânico.
Só então reparo na mulher gorda que salta
da mesa ao lado,
na direcção dela e prega-lhe uma bofetada tão potente que faz cambalear
o vestidinho de alças tropeça no bordo do passeio e quase cai,
o vestidinho de alças tropeça no bordo do passeio e quase cai,
parte o salto à sandália, atropela a cadeira da
última mesa
dás uns gritinhos alarmados quando surge o do mercedes.
Por momentos penso. Acabou-se. Foste apanhado pela mulher.
Resolvam o resto em casa. Engano-me!
A ruiva volta atrás, com o sapato ainda inteiro, em riste.
Resolvam o resto em casa. Engano-me!
A ruiva volta atrás, com o sapato ainda inteiro, em riste.
A gritaria junta a curiosidade. À porta da loja
dos tapetes. Na ourivesaria.
Na estação dos Correios. No armazém do chinês. Na
venda de jornais.
Num ápice o mundo desagua na praça.
É então que a mulher gorda lança as mãos aos cabelos da ruiva
e zás, num supremo impulso, fica com a
cabeleira ruiva nas mãos
ao mesmo tempo que a ruiva histérica agora sem extensões,
grita falsetes e jura vinganças de dedo espetado.
grita falsetes e jura vinganças de dedo espetado.
O homem visivelmente atrapalhado é agora
perseguido pela mulher
em direcção ao mercedes, que de cabeleira
ruiva nas mãos grita-lhe:
“Nunca te perdoarei meu grande porco! Ao menos
tivesses-me traído com uma mulher!
Com um mulherão, penso eu.
E não consigo parar de sorrir, enquanto fecho a
janela.