9 de setembro de 2016

AFINAL AINDA POR CÁ ANDO...

QUANDO ACORDEI não sabia onde estava. Dois mascarados de batas esverdeadas e um(a) outro(a) de bata azul debruçavam-se naquela espécie cama de faquir em que me encontrava estendido
e chamavam pelo meu nome ao mesmo tempo que perguntavam se estava tudo bem.
"Olá senhor Mário! Está tudo bem!?"
Aos poucos o meu cérebro foi saindo da neblina da anestesia Instintivamente quis levantar a cabeça mas parecia que carregava toneladas. A tentativa não passou despercebida à bata azul. Usava uma máscara e tinha uns óculos com uns olhos esverdeados por dentro como se fossem dois pequenos peixes sorridentes nos aquários. A voz era feminina e muito suave. Quase segredava ao meu ouvido direito.Logo o que oiço pior.
"Senhor Mário, tente manter-se calminho e o mais descontraído possível. Está tudo bem!"
Bom. Se está tudo bem, já não é mau. Vou seguir o conselho e por os neurónios a faiscarem para (re)perceber o que aconteceu.
De um lado e do outro, com intervalos regulares de uns dois metros, mais macas iguais, umas vazias, outras com umas espécies de múmias semi enroladas em lençóis brancos. Eu, apesar, de não me ver totalmente, estava na mesma figura. Procurei com os olhos um relógio. Era bom saber a quantas andava.
(Lá estava um, na parede do fundo já no corredor, um esforço de visão pela porta não totalmente fechada. Ponteiro gordo no 11. Ponteiro magro no 9. Um quarto para o meio dia?!)
Fui operado. estava no recobro. A intervenção no meu rim esquerdo tinha levado mais de três horas. Mas não sabia nada nem parecia haver ali alguém capaz de me dizer como foi. De repente, um monitor que mal podia ver, atrás de mim, entrou em pânico. Um alarme como se estivesse a ser assaltado. A bata azul apareceu logo. Mexeu no torniquete que tinha junto ao balão pendurado num cabide à minha direita e que só reparei que se ligava á minha mão direita envolta em ligadura com vestígios de sangue.
"Está tudo bem, senhor Mário. mantenha-se calminho que vai tudo bem! Foi só uma subidinha de tensão"
Enquanto agradecia mentalmente a persistência da bata azul e dos olhos esverdeados dentro dos óculos realizei que conseguia falar. Tinha sede. Era da anestesia. Perguntei o significado dos números que via no tal monitor que começara a guinchar atrás de mim. Explicou-me atenciosa e delicada. Adivinhei-lhe uns lábios finos por baixo da máscara a deixarem escapar um sorriso. Pressão arterial máxima (o de cima); mínima (logo por baixo). depois, por baixo as pulsações e finalmente a percentagem de oxigenação. Uma olhadela rápida. 18-10-80-92%.
(Está tudo bem, diz ela....)
Procurei alhear-me daquilo tudo, vaguear pela vida e não pensar muito nas horas que ainda teria de passar ali antes de subir para a enfermaria no serviço de especialidades cirúrgicas. Mas o vício ficou-me. E os meus olhos tinham agora dois alvos preferenciais. O monitor e aquela espécie de equação matemática de vida e a bata azul nem que fosse só para me dizer.
"Está tudo bem senhor Mário."
O movimento aumentara. Macas que saíram ora vazias ora com múmias semi enroladas nos lençóis brancos, outras que chegavam com outras múmias e aportavam junto aos monitores como eu. Doíam-me as costas da posição e da dureza da tábua. E o lado esquerdo junto à anca. Bastante. Apalpei e notei a ligadura. bem, pelo menos acertaram no rim. Já não era mau. A bata azul acompanhada por uma bata branca chegou-se ao pé de mim. Agora sim sabia que estava a sorrir por detrás da máscara e os olhos mais simpáticos ainda.
"Vai subir, senhor Mário. Felicidades!"
Como para o céu tenho a certeza de que não irei, fiquei com a certeza que finalmente ia sair dali para a cama. Sorri e agradeci. Quando saí para o corredor olhei para o relógio que se mantinha na parede com o ponteiro gordo no 4 e o magro a fugir para o 7. Vinte e cinco para as cinco? Já? Foi então que comecei a ficar mais 'calminho'...