6 de junho de 2015

UM PAS DE DEUX

Isso não tem nada demais. Coisa simples.
O meu primo Zé Francisco deu-me uma palmada nas costas
Mais velho do que eu três anos. Com dezassete era tão experiente…
A tua mão esquerda aperta a mão direita dela. Assim.
A tua mão direita em volta da cintura dela, Assim.
Deixas-te ir com a música, avanças com a perna direita, dois passos,
e segues com um para o lado e dás um quarto de volta,
pela esquerda ou direita, tanto faz; por onde te der mais jeito…
ao mesmo tempo vais chegando-te a ela, percebes?
Logo no início, não. Dá-lhe tempo. Mas não muito, senão acaba-se a música.
Ah, é verdade! Pormenor importante. O joelho. Vais metendo o joelho. OK?
Eu agarrado a um vestido comprido pendurado num cabide.
A voz meiga da Françoise Hardy, no gira discos do tio Reinaldo,
‘tous les garçons et les filles de mon age se proménent'
a quarenta e cinco rotações por minuto  Ó pá, atenção a esse joelho!
E o vestido da minha prima Teresa pendurado no cabide.
Sem braços, sem pernas, sem joelhos.
Aquela do joelho só servia para atrapalhar. Que mania!
Eu só queria dançar com a Maria João. Nessa noite, no baile da pensão.
As tranças muito loiras, os olhos muito azuis, tão grandes sempre a sorrirem,
os lábios cor de morango a pedirem um beijo,
a cintura tão fininha a pedir a minha mão, as pernas de bailarina.
Tás mas é apaixonado!’ Zé Francisco com uma careta trocista.
Se estar apaixonado era estar sempre a vê-la 
mesmo quando fechava os olhos. Então estava apaixonado!
Ao jantar comi pouco. Tremura no estômago. Nó na garganta.
A minha tia a insistir. ‘E tu que gostas tanto de croquetes…’ Mais um, pronto.
A minha prima a opinar sobre a minha falta de apetite
uma canelada minha por debaixo da mesa
o olhar severo do Zé Francisco, a impor-lhe silêncio.
Cadeiras e mesas dispostas em meia-lua, na esplanada da pensão.
No céu, estrelas em volta da lua mais de meia.
O dono da pensão cedeu o gira-discos e a aparelhagem sonora.
Quase toda a gente se conhecia, os hóspedes de férias.
As conversas entre famílias; a esplanada foi-se enchendo.
Zé Francisco tinha trazido consigo a Françoise Hardy.
Dizia-me que era para eu não dar barraca. Mais seguro.
O dono da pensão abriu o baile, com a filha que era professora. 
Uma valsa. Passados minutos, juntaram-se-lhe mais pares. 
Quando a música acabou todos bateram palmas…
Depois mais uma valsa; depois um tango.
Zé Francisco foi dançar com uma magricela com cabelo de anémona,
e tentáculos de lula que se emaranhavam em volta dele.
O tango já ia avançado quando vi aparecer Maria João.
De repente passei a ter um motor de fórmula um, dentro do peito,
deixei de ouvir a música e de ver o que se passava à minha volta.
A Maria João à minha frente, tranças louras, olhos muito azuis,
lábios cor de morango, cintura muito fina, pernas de bailarina,
vestido vermelho com bolas azuis, sandálias de tiras vermelhas e azuis
e eu com um motor de fórmula um, dentro do peito…
Sem saber muito bem como foi, no segundo seguinte, estava lá, ao lado dela 
o meu primo num voo supersónico rumo ao gira discos de Françoise Hardy em punho, 
eu a perguntar, ‘Queres dançar comigo?’ e ela a olhar para mim ‘Quero, pois…’
As tranças azuis mais compridas, o sorriso a rasgar os olhos de morango,
os lábios a dançarem como pernas de bailarina….
e o fórmula um, na casa de partida, a arrancar ensurdecedor,
num barulho de aurículas e de ventrículos à desgarrada
‘tous les garçons et les filles de mon age’ a quarenta e cinco rotações por minuto
Maria João agarrada a mim e eu a medir os passos para a esquerda,
a volta para a direita, ela mais chegada a mim. Quando é que meto o joelho?
as mãos dela pousaram nos meus ombros, os braços dela em volta do meu pescoço, 
os olhos dela a fitarem os meus, numa confusão de morangos azuis e de olhos louros, 
o ar cheirava a lavanda e como cheiravam bem os braços nus da Maria João…
A Françoise Hardy calou-se e eu consegui ouvi-la num sussuro
‘Olha, já acabou…foi bom! Queres dançar mais uma?
E eu, ainda, com o motor de fórmula um numa confusão de aurículas e ventrículos.
‘Pode ser. Queres ser minha namorada?’
E ela com os morangos a sorrirem e dois lagos azuis no lugar dos olhos
‘O meu pai não me deixa namorar. Só me deixa dançar...'’
E eu de fórmula um gripado, mesmo sem aurículas e nem ventriculos.
‘Então está bem. Dançamos só…mas quando o teu pai deixar, avisas-me?!’.