26 de novembro de 2015

SOU UM SIMPLES NÃO CRENTE

Sou, tão só, um simples não crente
Que gosta do silêncio imóvel das catedrais vazias.
Da paz que existe no silêncio imóvel das catedrais vazias
De respirar o silêncio imóvel das catedrais vazias
De amparar os meus cansaços.
De fortificar as minhas fraquezas.
De resolver as minhas dúvidas.
De realizar os meus devaneios.
De ouvir os meus pensamentos.
No silêncio imóvel das catedrais vazias.


Não sou um descrente.
Sou, tão só, um simples não crente.
Que crê de maneira diferente

23 de novembro de 2015

AS COSTAS DA LOLLOBRÍGIDA

Houve uns tempos em que o meu primo Zé, mais velho do que eu três anos, se tornou visita lá de casa. Aparecia para ver a tia Judite, que era a minha avó, com um par de beijinhos e mais um que mandava a mãe. Perguntava logo pela Aninhas, que era a neta do proprietário do prédio do lado que vivia no primeiro andar e como não tínhamos aulas às terças e quartas de tarde, ficávamos à janela das traseiras à conversa.
O meu primo passou a plantar-se entre mim e a janela da Aninhas e as conversas passaram a ser a três. Ou melhor. Continuaram a dois porque ele monopolizava a janela e a conversa. Aninhas, sempre sorridente a ouvi-lo, cruzava os braços no peitoril da janela e debruçava-se tanto que os seus dois generosos seios dos seus resplandecentes quinze anos, tanto se alvoroçavam irrequietos nas blusas como brotavam incandescentes dos decotes das camisolas que ela usava consoante as estações do ano ou as temperaturas do dia.
Uma terça-feira, o Zé telefonou com uma proposta inovadora para a tarde. No Alvalade, cinema que ficava agarrado ao prédio onde ele morava, passava o filme. Um daqueles que nunca mais se esquece na vida
Ó pá, é que se vê as mamas à Lollobrígida! E, descrevia-me a cena com tal pormenor que julguei que ele já tivesse ido ver o filme. O resto era chato. Achava que tinha umas batalhas porreiras, "Mas pá, é mesmo a sério… as mamas da Lollobrígida são um verdadeiro monumento!"
Havia um pequeno senão. O filme era para maiores de dezasseis anos e eu só tinha catorze. E havia também aquele porteiro que se encarregava de travar os espertinhos. A necessidade aguça o engenho. A solução era vestir umas calças para parecer mais velho.
Ó Chico, pá, mas eu não tenho nenhumas calças de jeito. Só calções! Disse-lhe a roçar o pânico. Só se tiver algum par que te sirva. Lá fomos a casa dele primeiro. Eu confiava no seu saber destas coisas. Milagre. Havia mesmo um par de calças azuis escuras, um pouco amarrotadas mas que serviam perfeitamente. Eu, apesar de mais novo, era quase do tamanho dele. "Tás um homem…". E deu-me uma palmada nas costas e confiança para desafiar o porteiro.
A matinée tinha muita gente. Plateia praticamente cheia. Só vagas nas duas primeiras filas. Demasiado à frente. Primeiro balcão demasiado caro. Nem pensar. Comprámos segundos balcões. Apagaram-se as luzes e nem sabia quando aparecia a Lollobrígida com as ditas à mostra ou será que havia algum truque?
"Não sei, pá. Acho que estão mesmo todas de fora…é a seguir ao intervalo."
O intervalo era desesperadamente tarde, apesar de ser a meio do filme, mais ou menos. Eu a perguntar a mim mesmo porque é que o realizador não teria feito a cena antes do intervalo. Apagaram-se, de novo, as luzes e depois da batalha de Waterloo, o meu primo sobressaltou-se.
"Acho que é agora… na tenda com o tenente…acho que foi o que o Carlos disse."
Veio a tenda com o tenente ainda do lado de fora a dar ordens a uns soldados. A Lollobrígida, no interior, meio recostada numa ‘chaise longue’; despida da cintura para cima, prepara-se para ser pintada por um artista qualquer quando entra o tal tenente.

"Que costas lindas, aprecio em voz demasiado alta." Um ‘chiu’ de um parvalhão qualquer que não gostava de costas e o meu primo a completar:
"Espera até veres o resto.". E a câmara a rodar. Ah! Ela levanta-se e tenta ocultar os seios com os braços nus, surpresa com a entrada do militar. "É agora! Aí estão elas!" Quase gritou o meu primo e eu num esforço para não perder nada. Desta vez ninguém mandou calar ninguém. Suspense absoluto. Afinal quantos tinham ido ver as mamas da Lollobrígida?
Mas, a imaginação cavalgara a cena ou a censura cortara o arrojo. Só o tenente parecia ver. Com o olhar confuso e voz trémula mas ninguém prestara atenção ao diálogo. Para nós, os que pagámos, foi pouco por muito pouco… tempo. O meu primo comentava que nunca tinha visto nada igual. Eu, sinceramente, tinha gostado muito das costas. Essas sim, vi-as todas. Do pescoço por ali abaixo. O meu primo assegurava num entusiasmo.
"Olha que deu para ver. São assim como as da Aninhas quando está à janela, percebes?"
Percebi. Nunca tinha percebido outra coisa. Então, a partir dessa tarde, em que quase fiquei apaixonado pelas costas da Lollobrígida, percebi ainda melhor. Nunca mais dei ao meu primo o lugar que ficava do lado da janela da Aninhas. Era eu que devia estar ali a falar com ela como o fazia antes da chegada do meu primo. Afinal a vizinha era minha, não dele. Ele que fosse ver os filmes das Lollobrígidas todas quantas vezes quisesse...eu gostava mesmo era de conversar com a Aninhas.
Pelo menos enquanto não viesse a censura abotoar-lhe as blusas ou fechar-lhe os decotes às camisolas.

7 de novembro de 2015

COMO SE ACORDA DUM PESADELO

Seis da tarde.
Estou na sala de espera do serviço de neurocirurgia vendo à janela, mais um dia que se fecha.
A sala é um cubo rasgado por uma porta verde, sempre aberta, e um postigo de vidro.
Meia dúzia de cadeiras em plástico que já foi branco, desbotado pelo tempo de quem espera.
A mesa de centro quadrada com tampo de fórmica e as pernas em metal cromado a descascar.
O cadeirão de napa preta desfalece, a um canto, de perna partida. A ortopedia não deve ter vagas.
Pendurado na parede, o aparelho de televisão vomita, aos solavancos, imagens esverdeadas,
Mantem-se mudo por opção mas sente-se a necessidade de uma cirurgia à vesícula.
Não há mais ninguém. Espreito pela porta. Ao fundo do corredor há um quarto com cinco camas.
Na cama trinta e um está o Ricardo entre os mimos da mãe e os afagos da mulher.
Eu fiquei aqui à espera. Só podem lá estar duas pessoas de cada vez. É a vez delas.
Mulheres são beijos e afagos. Homens são abraços apertados e palmadas nas costas.
Eu sempre beijei os meus filhos. E claro que os abraço com palmadas nas costas.
Mas, agora é a vez delas. Eu espero! Esperar também faz parte. E, vamos ter de saber esperar.

O Ricardo chegou ao hospital às onze horas da noite de uma segunda-feira. Três semanas.
Um grave acidente na moto quando regressava do trabalho atirou-o para os cuidados intensivos.
Duas semanas em coma profundo. Uma angústia que se ampliava a cada dia que passava
À hora da visita diária a ansiedade encrespava-se junto do segurança que nos segurava a pressa.
Um quarto de hora para a visita. Os médicos, no fim, vinham fazer o ponto da situação.
O que podiam fazer, estava a ser feito. As lesões eram graves. O coma profundo.
Tínhamos de ter esperança e aguardar.
Aguardar que o Ricardo na sua luta com ele próprio, acordasse de novo, para a vida.
Ele na sua luta silenciosa, ligado às máquinas que o prendiam à vida
dormia numa tranquilidade tão grande, tão grande que só a morte pode ter.
num emaranhado de fios, tubos e sondas para que a vida não lhe escapasse.
Todas as manhãs eu telefonava a querer boas notícias. Manter-se estável já era boa notícia.
Obrigado, agradecia eu. Por nada. Era o apoio dos familiares e amigos. Dos amigos dos amigos.
De muitos. A comunhão na dor. A comunhão na esperança. A força de querer. O querer com força.

Anteontem o Ricardo acordou. Saiu de um túnel como se tivesse receio de cegar na claridade.
Foi apenas o primeiro e tímido passo de uma caminhada muito longa que tem de enfrentar.
Para a qual todos estamos convocados. Passo a passo. Hora a hora. Dia a dia. Mesmo mês a mês.
Quem sabe por quanto tempo? Não importa o tempo que demorar.
As vezes que tiver de cair, para se erguer de novo. Embora custe, a vida é feita destas coisas.

Lá em baixo, no acesso à urgência, numa vertigem de amarelo estridente, um cento e doze.
Duas batas brancas retiram uma maca com um corpo embrulhado num oleado vermelho.
Um terceiro, ao lado, segura no alto o que parece ser um balão de soro. Começou a chover.
A janela deste dia a cerra-se lentamente e o crepúsculo anuncia mais uma noite.
Oiço passos no corredor. É a minha mulher. Vem dar-me a vez.

4 de novembro de 2015

BOA NOITE MEU FILHO

Porque durante estas semanas em que te vi
estirado numa cama, naquele sono sem sonho
- ou será que sonhaste? -
na tua obstinada e silenciosa luta pela vida
na tua solitária viagem pela borda do abismo
que te senti tão frágil e tão incerto,
e ao mesmo tempo, tão forte e tão firme
talvez nunca como esta noite,
tivesse sido tão reconfortante, para mim,
poder fazer-te aquilo que te fiz de menos
durante todo aquele tempo em que dormiste
no teu quarto de brinquedos e de sonhos de criança.
Aconchegar-te a roupa em volta do pescoço,
afagar-te os cabelos, deixar-te um beijo na testa
e desejar-te uma noite tranquila.
Até amanhã, Ricardo.
Tem uma excelente noite!