7 de novembro de 2015

COMO SE ACORDA DUM PESADELO

Seis da tarde.
Estou na sala de espera do serviço de neurocirurgia vendo à janela, mais um dia que se fecha.
A sala é um cubo rasgado por uma porta verde, sempre aberta, e um postigo de vidro.
Meia dúzia de cadeiras em plástico que já foi branco, desbotado pelo tempo de quem espera.
A mesa de centro quadrada com tampo de fórmica e as pernas em metal cromado a descascar.
O cadeirão de napa preta desfalece, a um canto, de perna partida. A ortopedia não deve ter vagas.
Pendurado na parede, o aparelho de televisão vomita, aos solavancos, imagens esverdeadas,
Mantem-se mudo por opção mas sente-se a necessidade de uma cirurgia à vesícula.
Não há mais ninguém. Espreito pela porta. Ao fundo do corredor há um quarto com cinco camas.
Na cama trinta e um está o Ricardo entre os mimos da mãe e os afagos da mulher.
Eu fiquei aqui à espera. Só podem lá estar duas pessoas de cada vez. É a vez delas.
Mulheres são beijos e afagos. Homens são abraços apertados e palmadas nas costas.
Eu sempre beijei os meus filhos. E claro que os abraço com palmadas nas costas.
Mas, agora é a vez delas. Eu espero! Esperar também faz parte. E, vamos ter de saber esperar.

O Ricardo chegou ao hospital às onze horas da noite de uma segunda-feira. Três semanas.
Um grave acidente na moto quando regressava do trabalho atirou-o para os cuidados intensivos.
Duas semanas em coma profundo. Uma angústia que se ampliava a cada dia que passava
À hora da visita diária a ansiedade encrespava-se junto do segurança que nos segurava a pressa.
Um quarto de hora para a visita. Os médicos, no fim, vinham fazer o ponto da situação.
O que podiam fazer, estava a ser feito. As lesões eram graves. O coma profundo.
Tínhamos de ter esperança e aguardar.
Aguardar que o Ricardo na sua luta com ele próprio, acordasse de novo, para a vida.
Ele na sua luta silenciosa, ligado às máquinas que o prendiam à vida
dormia numa tranquilidade tão grande, tão grande que só a morte pode ter.
num emaranhado de fios, tubos e sondas para que a vida não lhe escapasse.
Todas as manhãs eu telefonava a querer boas notícias. Manter-se estável já era boa notícia.
Obrigado, agradecia eu. Por nada. Era o apoio dos familiares e amigos. Dos amigos dos amigos.
De muitos. A comunhão na dor. A comunhão na esperança. A força de querer. O querer com força.

Anteontem o Ricardo acordou. Saiu de um túnel como se tivesse receio de cegar na claridade.
Foi apenas o primeiro e tímido passo de uma caminhada muito longa que tem de enfrentar.
Para a qual todos estamos convocados. Passo a passo. Hora a hora. Dia a dia. Mesmo mês a mês.
Quem sabe por quanto tempo? Não importa o tempo que demorar.
As vezes que tiver de cair, para se erguer de novo. Embora custe, a vida é feita destas coisas.

Lá em baixo, no acesso à urgência, numa vertigem de amarelo estridente, um cento e doze.
Duas batas brancas retiram uma maca com um corpo embrulhado num oleado vermelho.
Um terceiro, ao lado, segura no alto o que parece ser um balão de soro. Começou a chover.
A janela deste dia a cerra-se lentamente e o crepúsculo anuncia mais uma noite.
Oiço passos no corredor. É a minha mulher. Vem dar-me a vez.