23 de novembro de 2015

AS COSTAS DA LOLLOBRÍGIDA

Houve uns tempos em que o meu primo Zé, mais velho do que eu três anos, se tornou visita lá de casa. Aparecia para ver a tia Judite, que era a minha avó, com um par de beijinhos e mais um que mandava a mãe. Perguntava logo pela Aninhas, que era a neta do proprietário do prédio do lado que vivia no primeiro andar e como não tínhamos aulas às terças e quartas de tarde, ficávamos à janela das traseiras à conversa.
O meu primo passou a plantar-se entre mim e a janela da Aninhas e as conversas passaram a ser a três. Ou melhor. Continuaram a dois porque ele monopolizava a janela e a conversa. Aninhas, sempre sorridente a ouvi-lo, cruzava os braços no peitoril da janela e debruçava-se tanto que os seus dois generosos seios dos seus resplandecentes quinze anos, tanto se alvoroçavam irrequietos nas blusas como brotavam incandescentes dos decotes das camisolas que ela usava consoante as estações do ano ou as temperaturas do dia.
Uma terça-feira, o Zé telefonou com uma proposta inovadora para a tarde. No Alvalade, cinema que ficava agarrado ao prédio onde ele morava, passava o filme. Um daqueles que nunca mais se esquece na vida
Ó pá, é que se vê as mamas à Lollobrígida! E, descrevia-me a cena com tal pormenor que julguei que ele já tivesse ido ver o filme. O resto era chato. Achava que tinha umas batalhas porreiras, "Mas pá, é mesmo a sério… as mamas da Lollobrígida são um verdadeiro monumento!"
Havia um pequeno senão. O filme era para maiores de dezasseis anos e eu só tinha catorze. E havia também aquele porteiro que se encarregava de travar os espertinhos. A necessidade aguça o engenho. A solução era vestir umas calças para parecer mais velho.
Ó Chico, pá, mas eu não tenho nenhumas calças de jeito. Só calções! Disse-lhe a roçar o pânico. Só se tiver algum par que te sirva. Lá fomos a casa dele primeiro. Eu confiava no seu saber destas coisas. Milagre. Havia mesmo um par de calças azuis escuras, um pouco amarrotadas mas que serviam perfeitamente. Eu, apesar de mais novo, era quase do tamanho dele. "Tás um homem…". E deu-me uma palmada nas costas e confiança para desafiar o porteiro.
A matinée tinha muita gente. Plateia praticamente cheia. Só vagas nas duas primeiras filas. Demasiado à frente. Primeiro balcão demasiado caro. Nem pensar. Comprámos segundos balcões. Apagaram-se as luzes e nem sabia quando aparecia a Lollobrígida com as ditas à mostra ou será que havia algum truque?
"Não sei, pá. Acho que estão mesmo todas de fora…é a seguir ao intervalo."
O intervalo era desesperadamente tarde, apesar de ser a meio do filme, mais ou menos. Eu a perguntar a mim mesmo porque é que o realizador não teria feito a cena antes do intervalo. Apagaram-se, de novo, as luzes e depois da batalha de Waterloo, o meu primo sobressaltou-se.
"Acho que é agora… na tenda com o tenente…acho que foi o que o Carlos disse."
Veio a tenda com o tenente ainda do lado de fora a dar ordens a uns soldados. A Lollobrígida, no interior, meio recostada numa ‘chaise longue’; despida da cintura para cima, prepara-se para ser pintada por um artista qualquer quando entra o tal tenente.

"Que costas lindas, aprecio em voz demasiado alta." Um ‘chiu’ de um parvalhão qualquer que não gostava de costas e o meu primo a completar:
"Espera até veres o resto.". E a câmara a rodar. Ah! Ela levanta-se e tenta ocultar os seios com os braços nus, surpresa com a entrada do militar. "É agora! Aí estão elas!" Quase gritou o meu primo e eu num esforço para não perder nada. Desta vez ninguém mandou calar ninguém. Suspense absoluto. Afinal quantos tinham ido ver as mamas da Lollobrígida?
Mas, a imaginação cavalgara a cena ou a censura cortara o arrojo. Só o tenente parecia ver. Com o olhar confuso e voz trémula mas ninguém prestara atenção ao diálogo. Para nós, os que pagámos, foi pouco por muito pouco… tempo. O meu primo comentava que nunca tinha visto nada igual. Eu, sinceramente, tinha gostado muito das costas. Essas sim, vi-as todas. Do pescoço por ali abaixo. O meu primo assegurava num entusiasmo.
"Olha que deu para ver. São assim como as da Aninhas quando está à janela, percebes?"
Percebi. Nunca tinha percebido outra coisa. Então, a partir dessa tarde, em que quase fiquei apaixonado pelas costas da Lollobrígida, percebi ainda melhor. Nunca mais dei ao meu primo o lugar que ficava do lado da janela da Aninhas. Era eu que devia estar ali a falar com ela como o fazia antes da chegada do meu primo. Afinal a vizinha era minha, não dele. Ele que fosse ver os filmes das Lollobrígidas todas quantas vezes quisesse...eu gostava mesmo era de conversar com a Aninhas.
Pelo menos enquanto não viesse a censura abotoar-lhe as blusas ou fechar-lhe os decotes às camisolas.