4 de maio de 2015

DILÚVIO

Eu acho que o dilúvio começou, mais ou menos, assim.
Uma cortina de água tão espessa que mais parece catarata dos céus
Reposteiro líquido que permanece cerrado, dia e noite, noite e dia.
O céu plúmbeo a descer, numa sombra que ensombra tudo em baixo.
Mais longe, para os lados da serra, onde o tecto se aproxima mais da terra
Rebentou trovoada, flashes de fotógrafo sem máquina
Mas com ruído de quem arrasta móveis num sótão
O melro do bico amarelo de chapéu-de-chuva debaixo da asa
passa num salto sem gravidade entre o limoeiro e a laranjeira. Nem me viu.
Um bando de passarada avulsa passa num alvoroço de asas e de pios.
O gato da vizinha gabardina às riscas que tenta abrigo, a raspar o muro,
olha desinteressado com uma miadela de desdém.
A toupeira do jardim desapareceu na labiríntica catacumba, por baixo da relva
A popa num voo em pânico afasta-se para não molhar a crista.
O cavalo do outro lado do vale, relincha num trote molhado.
Anda pelo ar o cheiro a terra molhada com pedaços de flores lilases
E o vento, subitamente vermelho, assobia a descer a encosta de eucaliptos .
No vale, um manto acastanhado de lama tomou conta do espaço.
Apenas pedaços de paredes, telhados e chaminés com chapéus de ferro.
O tejadilho de lona de uma camioneta e as copas das árvores do pomar
O rio saltou da cama em correria louca e tomou conta da estrada
A arca do Noé acabou de passar em frente ao portão.