24 de junho de 2022

MATARAM UM ANJO

 

"... mas as crianças, Senhor, porque lhes dais tanta dor? Porque padecem assim?..." (Augusto Gil, in "Balada da Neve").
A morte absolutamente chocante da menina de Setúbal é, infelizmente, mais um caso da miséria moral e da maldade humana. Os contornos da história são já sobejamente conhecidos e apesar de irem ser ouvidos pelo juiz de instrução, os alegados autores materiais do crime para quem se exige, desde já, punição exemplar, a revolta popular contra a mãe da Jéssica é de todo justificada.
Que mãe é esta que vai entregar a sua própria filha como penhor e ainda por cima sob ameaças de morte?
Que mãe é esta, a quem lhe tinham sido retirados já cinco filhos por notória incapacidade de os criar?
Que mãe é esta?
A miséria humana uma vez mais e o dever e a responsabilidade que não teve (percebe-se que não podia ter).
Por isso, esta "mãe" não deve ficar impune!
Mas, se a criança já estava sinalizada há dois anos pela CPCJ de Setúbal, em risco de vida e há comunicação nesse sentido ao Tribunal pergunta-se que fez o senhor procurador responsável pelo processo?
Que fez portanto o ESTADO enquanto obrigado a zelar pelo bem estar dos seus cidadãos, mormente pelos mais frágeis e inocentes?
Nenhuma destas perguntas, uma vez respondidas vão trazer de volta a Jéssica, mas urge que haja uma mudança para que casos destes dificilmente se voltem a repetir, já que será sempre impossível evitar que a maldade e a selvajaria de alguns se estenda a outros. Mas, pelo menos, que não sejamos sempre confrontados com situações em que "cheira a esturro" quando se fala das instituições estatais para as quais todos contribuímos para desempenharem com eficiência e eficácia o seu papel!
Mataram um anjo, esta madrugada,
Ó deuses onde estavam para a proteger?
A criança que mataram sem piedade
A criança que veio ao mundo para sofrer
Às mãos da miséria humana sem dignidade
Às mãos da própria mãe, também culpada!
Mataram um anjo, esta madrugada
E ficou mais negra a alvorada.

23 de junho de 2022

PASSEIO NO PARQUE

 


Podia ter sido numa qualquer tarde de férias numa qualquer rua de vila junto a uma praia qualquer mas a caligrafia de minha mãe, no verso da foto, identifica tempo e lugar: “Santo Amaro de Oeiras, Setembro de 1952”. Eu tinha pois três anos. Só completaria os quatro em Novembro. O meu pai, 31 anos.
Estas fotos têm a virtude de nos fazer reviver o tempo da nossa amnésia infantil. O tempo em que incapazes ainda de reter os acontecimentos e de os relacionar vamos coleccionando momentos na nossa memória “à posteriori”, normalmente, depois de ouvirmos alguém contar o que representa aquele instântaneo.
O meu pai e eu! Foi a minha mãe, o fotógrafo! A fotografia não está muito nítida. A minha mãe estava nervosa... segundo contava, esta foto foi tirada a caminho do parque, em Oeiras, onde havia uma esplanada e um parque infantil com baloiços e um escorrega. No mês de Setembro, a “linha” – a zona marginal que vai de Paço d’Arcos a Cascais – tinha tardes bem ventosas e portanto, o tempo puxava mais para o parque do que para a praia. Também, ao contrário do que acontece hoje na maioria dos casos, praia era de manhã, começava bem cedo, pelas nove horas e por volta do meio dia e meia hora regressava-se a casa, almoçava, fazia uma sesta sempre um bocado de fugida, a ver uma revista com bonecos, e depois, praia com lanche na marmita, ou uma voltinha pelo parque… como neste dia.
Eu passava o tempo a fazer perguntas sobre tudo e mais alguma coisa. A minha curiosidade chegava à velocidade do instantâneo. Às vezes perguntas complicadas, outras, observações arrancavam gargalhadas ao meus pais. Acho que o meu humor vem desde esses tempos. Ficou-me na memória que a minha mãe dizia que eu também dava espectáculo.
Parece que eu adorava uma das músicas muito em voga,
“Chiquita Bacana lá da Martinica” (não sei se cantada pela Carmen Miranda). O que é certo é que o dono do café do parque tinha lá um disco e punha a tocar assim que me via. E, imediatamente, eu começava a dançar e segundo ela dizia, com tanta desenvoltura que toda a gente aplaudia. Não tinha vergonha nenhuma… e o dono do café gostava muito pois ganhava clientela (digo eu).

9 de junho de 2022

BOOOOOOOOOOOM DIA MUNDO

 

E está um dia maravilhoso.
Tecto azul imaculado, Sol a dourar o cenário e temperatura de veraneio. Agita-se a passarada em voos de miúdos a brincar a apanhada, de árvore para árvore, nos vasos e nos canteiros as corolas de mil cores brilham em fileiras de luzes e o exército de girassóis todo voltado a nascente contempla o astro da vida com os seus enormes olhos castanhos. O riacho quer manter as águas frescas, procura abrigo nas sombras dos castanheiros entortando o corpo e a casa grande já escancarou as janelas para deixar entrar o dia.
Vamos aproveitar para fazermos um dia ainda mais maravilhoso pois somos nós quem mais contribui para enfeitar cada dia da nossa vida aproveitando a festa da natureza.
Tenhamos, então, um excelente dia

AO CAIR DO PANO

 

Quando levamos já umas boas décadas de existência e nos viramos para trás enfrentamos uma estranha sensação de que tudo está,
simultaneamente, longínquo e próximo, um passado que, irremediavelmente, se consumiu no tempo de um fósforo.
Desde quando comecei a sentir esta vertigem?
A vida escorreu por mim num repente.
Como naqueles filmes em que o realizador decide por as imagens a uma velocidade que as faz desfilar, tão rápidas como se nada de interessante ou importante se tivesse passado nesse entretanto.
Depois, quando o filme volta à velocidade normal, já passou muito tempo.
“A vida é o dever que nós trouxemos para fazer em casa.
Quando se vê, já são seis horas!
Quando se vê, já é sexta-feira!
Quando se vê, já é Natal...
Quando se vê, já terminou o ano...
Quando se vê perdemos o amor da nossa vida.
Quando se vê passaram 50 anos!
Se me fosse dado um dia, outra oportunidade, eu nem olhava o relógio.
Iria em frente e jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas...”
(Adaptação do poema "666”, de Mário Quintana)
Somos seres paradoxais servidos por memórias selectivas, punitivas, raramente purificadoras, maioritariamente apaixonados pelo futuro,
perdulários do presente, saudosos do passado.
Nesta atrapalhação que nos faz pensar hoje menos naquilo que fizemos ontem e mais no que tencionamos fazer amanhã,
vivemos um presente matizado por memórias, acontecimentos e projectos.
Alguém inventou que tempo é dinheiro, para que se trabalhe mais depressa, se ande mais depressa, se descanse mais depressa, se coma mais depressa, se faça tudo mais depressa, mesmo que muita coisa não tenha pressa de ser feita e muitas outras fiquem mal feitas por terem sido feitas à pressa. Porque não aproveitar o tempo é uma inutilidade. E perder dinheiro, uma calamidade!
Mas, tempo vale muito mais que dinheiro. É o que se tem, de mais precioso, para se gastar. Aproveitar o tempo não é fazer tudo mais depressa mas fazer no tempo em que deve ser feito e cada coisa tem o seu tempo para ser feita, sem pressa, nem vagar.
Estou numa fase da vida em que decidi impor a mim mesmo a regra do "mais devagar", saborear, até porque a doença pôs-me a pensar de uma maneira diferente.
Aproveitemos o nosso tempo. Aproveitemos esta noite de encantar.