8 de julho de 2015

'UM POVO QUE DIZ NÃO'


Só um povo de coragem
firmeza desmedida
e enorme determinação
pode rejeitar sem medo, 
e sem ambiguidade,
quem de te quer sugar a vida, 
destruir a dignidade tão ferida
o teu coração selvagem.

Bem haja o teu BASTA
Bem haja o teu NÃO.

(homenagem ao povo grego, 5 de Julho de 2015, data do referendo à austeridade)

6 de julho de 2015

O (MEU) SOLDADO (DES)CONHECIDO

Encostado ao muro alto que sombreia a fila de jazigos, está o obelisco.
Três metros de altura em granito, pirâmide quadrangular no topo,
inscrição na face voltada para a frente, para um quadrado de relva,
“Aqueles que por obras valerosas se vão da lei da morte libertando”,
Homenagem do povo ao soldado desconhecido. 9 de Agosto de 1967.
Quando o tio Amílcar morreu, eu tinha onze anos. Ainda não existia obelisco.
No funeral, apareceram sete homens com ar solene. Marchavam como soldados.
Camisas brancas, calças e sapatos pretos, braçadeira preta na manga esquerda
nas cabeças, bivaques cinzentos com o número quatro em metal amarelo
e duas espingardas cruzadas a brilharem naquela tórrida tarde de Julho.
Disse a minha mãe, amigos que tinham estado com o tio na guerra, em França.
Nunca me falara neles mas reconheci um, por o ter visto lá em casa algumas vezes.
Nessa tarde, o meu pai contou-me o que o tio Amílcar nunca me disse.
A noite estava serena quando o cabo Amílcar saíu em missão de reconhecimento
com outro camarada, até uma aldeia próxima, em poder dos alemães, 
a uns quatro quilómetros das suas linhas.  
Rastejaram pela lama, de buraco em buraco de obus
ultrapassaram o mais silenciosamente que puderam o arame farpado,
evitaram as minas e já estavam perto da estrada, quando tiveram de abrigar-se numa vala. 
Uma chuva de ‘very light’ vinda da trincheira inimiga, iluminou a noite.
Naquela vala estava uma jovem com uma criança de colo.
O medo não a deixava mostrar-se e evitava que o menino chorasse, dando-lhe o peito.
Quando viu os dois soldaos caíram quase sobre ela teve um sobressalto
ao mesmo tempo que tudo ficava claro à sua volta,
o grito que deu, o silêncio da noite ampliou.
Soldados alemães da trincheira mais próxima, a menos de cem metros,
começaram a metralhar o local atingindo a jovem que na aflição se levantara, 
pondo-se a descoberto. Duas ou três granadas, de gás mostarda, caíram por perto.
Começaram a correr na vala, O tio Amílcar com o bébé debaixo do braço
enquanto se serviam das máscaras antigás para proteger a criança e a jovem
ao mesmo tempo que respiravam alternadamente pela do companheiro.      
As duas horas mais longas da vida quando conseguiram regressar às linhas
Tinham salvo criança e jovem com determinação e coragem e foram ambos condecorados.
Mas o gás mostarda secara-lhe os pulmões, descompassara-lhe o coração.
Poucos meses depois, regressava num navio de guerra com outros feridos.
A tia Eulália morreu de enfarte. Oito anos depois. 
A casa estava fechada desde então e assim ficou até hoje.
Os primos do meu pai, depositaram-na num lar até ao dia da sua morte
Nunca se entenderam quanto à herança e menos ainda quanto às obras.
Meio destelhada, janelas esventradas, vidros estilhaçados
azulejos verdes e brancos já não formam o xadrez original
crostas de feridas abertas que sangram no negrume da fachada.
Escadaria de degraus gastos, anjos de pedra sem cabeça um e sem asas outro,
continuam teimosamente ajoelhados no bordo do pequeno lago seco
que as silvas invadiram depois de devorarem os canteiros
treparem os muretes do jardim e cobrirem a entrada da garagem,
Quando aqui vinha, com os meus pais visitar tios e primos
os anjos do lago estavam perfeitos, segurando umas tochas com flores, 
e os tabuleiros de margaridas, miosótis, lilases, sálvias e troviscos
eram sinfonia colorida de perfumes a que a tia Eulália dedicava alma e coração.
O tio Amílcar assim que me via, alongava o braço, agitava a mão, a voz fraca,
‘anda cá, meu menino’
e eu passava horas sentado ao lado dele, no cadeirão do quarto,
a ouvir-lhe aventuras que não eram as dele 
mas que ele me contava como se fossem..
Se lhe pedia que me contasse a história da guerra dele,
franzia-me o sobrolho
‘ora, isso não tem graça nenhuma…’
e lá vinha um ataque de tosse.
No portão fechado a cadeado, a placa ‘VENDE-SE,  parece eternizar-se.
O nó na garganta. O coração a subir-me no peito. Os olhos a ficarem húmidos.
'anda cá meu menino'
É então que parece que oiço não a voz, mas a tosse do tio Amilcar 
que tinha sido cabo no corpo expedicionário combatera na Flandres, 
na primeira guerra mundial e foi herói com medalha e tudo, 
não por ter matado gente mas por ter salvo uma criança e a mãe.
Regressou com aquela tosse convulsa, a espumar pela boca
aflições lívidas que o deixavam prostrado,
os dedos a repuxarem as golas do casaco de pijama
e aquela cara de enforcado que a doença ia deixando sem ar.
Num impulso, meto-me de novo no carro.
Nunca se pode revisitar a própria infância.