10 de dezembro de 2016

FAMILIA É O QUE FOR

Berço e aconchego, ninho a que se volta ao fim do dia.
Asa grande e protectora; mão sempre aberta e estendida.
Palavra acolhedora, regaço que embala a vida.
Amizade vencedora à chegada e na partida.
Corações em sincronia na tristeza e na alegria.
União nas horas más e o gosto de, nas boas, repartir.
Prazer mais que desejo de se estar sempre junto,
porque onde se está bem, não se tem porque sair.
Família é o que é, raramente o que deve ser.
Não se escolhe nem se sorteia, família é o que for.
Como dizia Pessoa, família não é um conjunto de parentes.
Mais do que afinidade de sangue, é afinidade de temperamento!

12 de novembro de 2016

UM VERÃO À SÃO MARTINHO 1



CONHECI O MARTINHO na tropa, em Tomar. Filho de industrial de Guimarães, o aspirante Martinho apresentava-se no quartel num Triumph TR3 vermelho, desportivo de 2 lugares, prenda de anos dos pais. coisa reservada a filhos de gente abastada. 
Num fim de tarde tempestuosa, quando regressava a casa de fim de semana, o céu parecia desabar em convulsões de água, tanta, que os limpa pára brisas do Triumph não conseguiam melhorar uma visibilidade apenas translúcida enquanto a trovoada espessa se ia amontoando para norte, no cume da serra. 
Apesar de rodar a velocidade moderada, só deu pelo velho quase em cima dele. Com o susto causado pela travagem quase suicida e depois impressionado pela figura esgotada do velho de farrapos ensopados pela intempérie logo ali decidiu levá-lo a casa e dar-lhe uma refeição quente. 
Já passavam as onze da noite dessa sexta feira quando deixou o velho num casebre perdido no meio da serra pois era ali que ele vivia sem ninguém de família por perto. A filha que casara e fora para a Venezuela com promessas que voltaria para o levar, enviava-lhe dinheiro, fotos dela com os dois netos lindos e mais promessas que seria para o ano. 
Sempre para o ano. 
Cinco anos passados de cartas e mais cartas com promessas. 
Por fim o silêncio. Há seis meses as cartas pararam.
E, ele perdido no tempo e no silêncio da serra vivia de recados e de pequenos trabalhos nas quintas das redondezas enquanto ia amarrotando esperanças e abafando cuidados. 
Martinho já não foi a casa nesse fim de semana.
Ocupou a manhã de sábado às compras pelas lojas de Tomar. Dois blusões bem quentes, mais duas camisolas, uns cobertores, calças e dois pares de botas. E arroz, feijão e massa. Conservas. Depois, Triumph vermelho carregado rumou ao casebre perdido no meio da serra e foi assim que nasceu uma amizade especial com o 'avô' Falcão.

UM VERÃO À SÃO MARTINHO 2


A CASA DOS MEUS AVÓS era um daquelas andares num prédio dos anos vinte com o corredor a começar na sala de entrada e a acabar, uns quilómetros depois, na cozinha. Pelo caminho quatro portas para outros tantos quartos e no lado oposto a porta dava para uma despensa mas a tia Leonor, irmã do meu avô, muito crente e devota de São Martinho, decidira dar outro fim.
O QUARTO DAS ORAÇÕES tinha uma espécie de armário em pau preto com duas portas abertas a mostrarem várias gavetas pequenas até meio e em cima numa espécie de altar, imagens de e pequenos quadros de santas e santos mártires e ao centro uma imagem grande de um Cristo de túnica purpúrea arrastando uma cruz, cabeça ensanguentada pelos espinhos da coroa e uma máscara de esforço. Dois pequenos bancos de almofadas de veludo encarnado serviam para a tia Leonor e por vezes a minha avó se ajoelharem em oração. 
Mas era a pintura na parede do lado esquerdo, por cima de uma mesa meia lua, com dois castiçais de duas velas cada e uma Bíblia com capa de carneira, que me fascinava. 
Um soldado romano que montava um robusto cavalo branco, cortava com a espada, a sua capa vermelha enquanto um mendigo seminu aguardava na berma do caminho.
O autor pintara o céu de um azul acinzentado sem anjos nem trombetas com uma paisagem desoladora de árvores esqueléticas e terra pedregosa.

A MINHA AVÓ contara-me que o cavaleiro piedosamente, vendo o mendigo a morrer de frio repartiu a sua capa com ele e Deus abriu então o céu e o Sol voltou a aparecer e o dia ficou quente e luminoso. E o cavaleiro que se chamava Martinho ficou santo e por isso diz a tradição popular que existe um verão em Novembro que é o de São Martinho. Satisfeita a curiosidade, já a minha avó se preparava para se ir embora quando eu lhe puxei a saia e lhe perguntei: 
"Ó avó, então se Deus mandou vir o Sol só depois de S. Martinho rasgar a capa porque é que não fez isso antes? Não se estragava a capa e o pobre não apanhava frio...."

SÃO MARTINHO DO PORTO


Em terra, há um vale de paraíso
dos céus, uma baía feita à mão
espelho onde lavamos um sorriso 
areal onde deixamos o coração.
De tão bela, julga-mo-nos sem juízo
no silêncio das tardes, uma emoção
para o corpo, tudo o que é preciso
para a alma, do mar a imensidão.
E, das dunas de Salir ao infinito
uma ave levanta vôo, um grito
de magia que nos envolve a paixão!

9 de novembro de 2016

O NÚMERO UM DAS RAÇAS HUMANAS


O senhor Lino tinha ar carrancudo, sempre de fato cinzento escuro às risquinhas brancas e gravata grená magrinha com nó a desaparecer no colarinho sempre muito grande. 
O senhor Lino era 'os olhos e os ouvidos' do senhor director com um cubículo ao lado da sala dos professores de onde saía nos intervalos dos tempos de aula a flutuar pelo recreio num silêncio de sombra para um eficaz desempenho da missão de vigilante.

A dona Marta a senhora pequenina e roliça que espreitava atrás do balcão da loja, tabacaria/papelaria/livraria, amontoado de jornais livros e revistas numa aparente desordem pois encontrava sempre tudo o que lhe era pedido também vendia as saquetas com os cromos das 'Raças Humanas', colecção de caras e figuras de homens e mulheres trajados e adornados à moda dos seus países e regiões que saltavam em grupos de três de cada uma. 
O mais difícil, segundo se dizia, era o cromo número um, 'homem de Bali' que um dia me saltou da saqueta e para minha admiração era igualzinho ao senhor Lino, excepto no trajar. Os mesmos olhos pequeninos de pássaro, a mesma beiçola descaída de ar meio perdido e as orelhas grandes a despegarem-se da cabeça.

Levei comigo o cromo e no intervalo das dez e vinte, no momento em que no recreio se negociavam as trocas dos cromos repetidos, mostrei o cromo do 'homem de Bali'.. E foi assim que o senhor Lino, um cromo vigilante 'olhos e ouvidos' do senhor director, passou a cromo 'número um das raças humanas'!

24 de setembro de 2016

ACABOU, JOÃO. VOU-ME EMBORA...

Ouviu a porta bater mas permaneceu imóvel, sentado à mesa, silêncio de olhar parado na parede do fundo com a mão esquerda a segurar o pedaço de manuscrito da despedida e a outra arrepanhar a toalha amarela com barras azuis, na esperança de inesperados passos no corredor e de a ver assomar, à porta da sala, transformada num vulto arrependido, arrastando a mala de viagem para parte nenhuma. Nada. Acabaria com raízes naquele lugar, corpo de tronco seco, pés de raízes, num inverno permanente.
(Acabou, João. Vou-me embora...)
Tinha a mesa posta: um prato, um copo e um talher. Ela já não tencionava jantar, nessa noite. Durante todo o tempo anterior, quase vinte anos, encontravam-se ao jantar ou nem por isso. Dormiam juntos umas cinco horas por noite quando ela se deitava depois de ter adormecido no sofá da sala a meio da última telenovela. Desistira de esperar por ele que chegava sempre demasiado tarde, uma última rodada de meio whisky novo, no café onde afogava uma vida inventada na solidão da neblina do álcool. Vontade de não ter vontade
(Acabou, João. Vou-me embora...)
A voz dela, calma e suave. Ali, de pé, na ombreira da porta, com o vestido azul curto, de alças que ele lhe oferecera. Há quantos anos? Quando chegou mais cedo, apanhou-a de mala de viagem feita. Para uma viagem sem volta. Ouviu-a como se estivesse debaixo de água, na turbulência engasgada de frases com censuras, com desgostos, com traições, com queixas. Um amor que se apagou como se apaga uma ilusão. Como ilusão aquele filho que ela teve, no ventre, durante três meses e que perdeu quando caiu pelas escadas no dia em que fazia trinta anos. Um lanço inteiro de degraus até chegar ao patamar com uma clavícula esmagada e uma poça de sangue a manchar-lhe as coxas, o vestido e o chão à sua volta. Ninguém soube que ele a tinha empurrado, num acesso de ciúmes. Num acesso de bebida a mais. Uma violência com nome de crime como noutras noites que lhe bateu deixando-a com nódoas negras no corpo e na alma. Depois, à medida que ela calava a mágoa num choro solitário ele parecia redobrar a violência. Ate que, encontrou a coragem nas dores de outras mulheres como ela que como ela tinham ganho a coragem de se libertar. Agora que lhe enterrava na carne os espinhos da vida que ele lhe dera, até sentia um estranho prazer. Tinham sido anos demais. Anos a mais.
(Acabou, João. Vou-me embora...)
Terminou sem uma lágrima. Sem comoção. Ainda pareceu esperar um pouco, tentando adivinhar uma reacção. Mas ele permaneceu debaixo de água onde os ecos das palavras lhe chegavam distorcidos. Ela teve um sorriso amargo. Fez aquele jeito com o ombro para evitar o escorregar da alça do vestido. Pegou na mala e na carteira vermelha que ele achava enorme e horrível e deu meia volta. Ele ficou parado no tempo, a arrepanhar as barras azuis da toalha amarela e o papel escrito com frases engasgadas de censuras, desgostos, traições, queixas, de um amor que se apaga como se apaga uma ilusão e que ela tinha embrulhado num envelope e posto em cima do prato, para o caso de não se encontrarem. Ficou a ouvir os passos dela a afastarem-se pelo corredor até que a porta ao fundo do corredor se abriu e segundos depois voltou a fechar-se com um estranho silêncio.





12 de setembro de 2016

PORQUE FUI BAPTIZADO OITO DIAS ANTES DE ME CASAR COM A MOÇA MAIS BONITA DA TERRA...

POUCO PASSAVA DAS ONZE HORAS, o enorme portão verde no extremo do muro alto que rodeava a ala norte do Convento abriu-se e em formatura, os cadetes começaram a aparecer numa onda de fardas verdes e boinas castanhas e botas reluzentes da graxa.(em frente à porta do posto do oficial de dia, ouviam-se as vozes dos comandos de pelotão, OLHÁÁÁÁÁÁR DIREITÁÁÁÁÁ!!!! e o ruído de trinta e tal botas baterem no chão, marcarem o momento da continência à bandeira, menos vezes parecendo uma só, na maioria dos casos, talvez semelhante a trovoada ) ansiando pelo momento em que a mesma voz de comando proferiria a última ordem da manhã: DESTROOOOOOOÇAR!!!)
Meia corrida ou meia pressa, de fardas, de malas e de sacos em direcção aos carros que no espaço fronteiro com os familiares ou simplesmente à espera que os donos chegassem e em demanda do destino de cada um, fossem desaparecendo na estrada pelas curvas que ligavam à Malveira. Viagem longa, nesse sábado, quase trezentos quilómetros e cinco horas. Pela Estrada Nacional 1 circulava-se com a paciência dos sobreviventes, quilómetros e quilómetros, atrás de enormes camionetas
( mais vale perder um minuto na vida que a vida num minuto, dizia o enorme placard à saída de Lisboa quando a auto estrada do Norte acabava 25 quilómetros depois, a chegar ao Carregado)
que dançavam na frente dos pára-brisas como filmes filmes de suspense ou de terror. Sever do Vouga surgia a meio da tarde, depois de ultrapassadas as curvas finais da estrada do rio, quinta do Sobral, cumprimentar os futuros sogros, aquele beijo "na moça mais linda da terra" e a seguir, família á espera
( ai filho, estás mais magrinho! era a minha avó que já não me via há três meses; não queres comer nada? tenho aqui bolo inglês acabadinho de fazer, era minha tia que o sabia como meu bolo preferido; era a minha mãe que já só pensava no meu casamento daí a oito dias e era o meu pai com aquele seu ar terrivelmente calmo a dar-me o abraço com aquela suave palmada nas costas de quando está tudo bem e sinto-me feliz por te ter aqui...)
tempo dos beijos, dos abraços, de abrir o saco com as cuecas, as peúgas, as fardas sujas de lama, cheirar a suor verde e a tudo, tomar um bom banho, vestir o fato azul escuro, camisa branca e gravata pérola adequadas à cerimónia e, depois da missa das sete a que não fui, então sim: o meu baptismo!(padre, era homem baixo e barrigudo, bom garfo, que nunca faltaria àquele casamento, sorridente, amável e à frente do seu tempo
- tivesse ele ido a Papa e seria ele certamente o primeiro Francisco -
foi de condescendência sem paralelo.
Não era uma conversão mas a exigência da Igreja: sem aquele sacramento, não poderia haver casamento. De maneira que, depois da missa das sete, baptizado discreto, sem pompa nem circunstância com meu sogro de vela na mão trémula de conter o riso pela dificuldade do sacerdote, em bicos de pés à minha frente, no ritual com os sagrados óleos, a água benta e a esquecer-se do meu nome: "Uma assim é que nunca me tinha acontecido! Haja Deus que é Pai e misericordioso", dizia o sorriso malicioso do padre.
PASSARAM ENTRETANTO 46 ANOS que fui baptizado para me poder casar com a "moça mais bonita da terra". 
Éramos jovens e queríamos esse amor consagrado.  
Outros tempos e projectos; uma guerra colonial que ameaçava cortar anos de juventude e tantas vezes, levar também a vida. Éramos jovens com pressa de viver! Como muitos, desde sempre e hoje também.
Nem melhor nem pior, apenas de uma maneira diferente!

9 de setembro de 2016

AFINAL AINDA POR CÁ ANDO...

QUANDO ACORDEI não sabia onde estava. Dois mascarados de batas esverdeadas e um(a) outro(a) de bata azul debruçavam-se naquela espécie cama de faquir em que me encontrava estendido
e chamavam pelo meu nome ao mesmo tempo que perguntavam se estava tudo bem.
"Olá senhor Mário! Está tudo bem!?"
Aos poucos o meu cérebro foi saindo da neblina da anestesia Instintivamente quis levantar a cabeça mas parecia que carregava toneladas. A tentativa não passou despercebida à bata azul. Usava uma máscara e tinha uns óculos com uns olhos esverdeados por dentro como se fossem dois pequenos peixes sorridentes nos aquários. A voz era feminina e muito suave. Quase segredava ao meu ouvido direito.Logo o que oiço pior.
"Senhor Mário, tente manter-se calminho e o mais descontraído possível. Está tudo bem!"
Bom. Se está tudo bem, já não é mau. Vou seguir o conselho e por os neurónios a faiscarem para (re)perceber o que aconteceu.
De um lado e do outro, com intervalos regulares de uns dois metros, mais macas iguais, umas vazias, outras com umas espécies de múmias semi enroladas em lençóis brancos. Eu, apesar, de não me ver totalmente, estava na mesma figura. Procurei com os olhos um relógio. Era bom saber a quantas andava.
(Lá estava um, na parede do fundo já no corredor, um esforço de visão pela porta não totalmente fechada. Ponteiro gordo no 11. Ponteiro magro no 9. Um quarto para o meio dia?!)
Fui operado. estava no recobro. A intervenção no meu rim esquerdo tinha levado mais de três horas. Mas não sabia nada nem parecia haver ali alguém capaz de me dizer como foi. De repente, um monitor que mal podia ver, atrás de mim, entrou em pânico. Um alarme como se estivesse a ser assaltado. A bata azul apareceu logo. Mexeu no torniquete que tinha junto ao balão pendurado num cabide à minha direita e que só reparei que se ligava á minha mão direita envolta em ligadura com vestígios de sangue.
"Está tudo bem, senhor Mário. mantenha-se calminho que vai tudo bem! Foi só uma subidinha de tensão"
Enquanto agradecia mentalmente a persistência da bata azul e dos olhos esverdeados dentro dos óculos realizei que conseguia falar. Tinha sede. Era da anestesia. Perguntei o significado dos números que via no tal monitor que começara a guinchar atrás de mim. Explicou-me atenciosa e delicada. Adivinhei-lhe uns lábios finos por baixo da máscara a deixarem escapar um sorriso. Pressão arterial máxima (o de cima); mínima (logo por baixo). depois, por baixo as pulsações e finalmente a percentagem de oxigenação. Uma olhadela rápida. 18-10-80-92%.
(Está tudo bem, diz ela....)
Procurei alhear-me daquilo tudo, vaguear pela vida e não pensar muito nas horas que ainda teria de passar ali antes de subir para a enfermaria no serviço de especialidades cirúrgicas. Mas o vício ficou-me. E os meus olhos tinham agora dois alvos preferenciais. O monitor e aquela espécie de equação matemática de vida e a bata azul nem que fosse só para me dizer.
"Está tudo bem senhor Mário."
O movimento aumentara. Macas que saíram ora vazias ora com múmias semi enroladas nos lençóis brancos, outras que chegavam com outras múmias e aportavam junto aos monitores como eu. Doíam-me as costas da posição e da dureza da tábua. E o lado esquerdo junto à anca. Bastante. Apalpei e notei a ligadura. bem, pelo menos acertaram no rim. Já não era mau. A bata azul acompanhada por uma bata branca chegou-se ao pé de mim. Agora sim sabia que estava a sorrir por detrás da máscara e os olhos mais simpáticos ainda.
"Vai subir, senhor Mário. Felicidades!"
Como para o céu tenho a certeza de que não irei, fiquei com a certeza que finalmente ia sair dali para a cama. Sorri e agradeci. Quando saí para o corredor olhei para o relógio que se mantinha na parede com o ponteiro gordo no 4 e o magro a fugir para o 7. Vinte e cinco para as cinco? Já? Foi então que comecei a ficar mais 'calminho'...

31 de agosto de 2016

A MIM, ENSINARAM A TER MEDO

A mim, ensinaram a ter medo!.
Medo de dizer e de não dizer;
medo de fazer ou apenas de dizer: faço! 
Medo de incomodar, medo de conhecer,
medo de causar embaraço
medo de reclamar e perturbar,
medo de chegar tarde e cedo demais,
medo de um beijo e de um abraço,
medo do que é a menos e do que é a mais
medo do transparente e do baço
medo da chuva e do Sol,
medo da noite e do dia,
medo da luz e da escuridão
medo do gato e do cão
medo do silêncio e do trovão
medo do mar e da floresta,
medo do que parece mal,
medo de estar em festa,
medo de ser normal.
Medo de tudo e de tanto
que me deu este espanto,
que me deu este cansaço
de viver com medo de ser.

21 de agosto de 2016

UMA MELGA NO QUARTO


Não sei se já lá estava à minha espera se entrou enquanto estive a fingir que lia mais duas páginas daquele livro que ando a fingir que estou a ler só para chamar o sono. Seja como for quando apaguei a luz, perto das três horas. tinha um sono fatal. Mas, ainda nem meia hora depois, um zumbido de caça ao ataque,
(os alemães na segunda guerra tinham uns aviões, os 'stukas' que quando atacavam, faziam um zumbido aterrador para os soldados que os esperavam em baixo)
que me fez acordar em sobressalto. Acendo logo a luz e aguardo pacientemente que poise num sítio que a deixe a descoberto
(consigo transformar-me num feroz predador de almofada, jornal, ou revista, sapato ou chinelo, seja o que for, em punho e vou numa caçada por todos os cantos do quarto até que, ei-la pousada na porta do roupeiro, na moldura do espelho, bem perto no espaldar da cama, se muito esperta no interior do abat jour ou, ó suprema satisfação, se muito estúpida, na parede branca ali bem à vista)
ou vou ser picado por várias vezes, em vários sítios do corpo, com consequências para o meu descanso. todo o resto da noite,
(desde criança que tenho uma péssima relação com este insecto arraçado de vampiro que aliás segundo relatos da minha mãe, vem desde o berço. Era normal acordar, exausto e desfigurado, com uma pálpebra ou um lábio ou um lóbulo da orelha inchados ou mesmo com vários inchaços caso o meu pai ou a minha mãe não tivessem conseguido caçar o bárbaro)
com comichão do tipo quanto mais coça mais comichão tem, voltas e mais voltas, almofada sobre a cabeça, depois o lençol esticado a fazer de tenda, depois passo pelas brasas, depois abro a defesa, depois o zumbido fatal e zás, nas costas, o pior de todos os sítios..

Esta hoje estava com sorte! Apenas a ouvia. Quando comecei a coçar o braço e as costas da mão esquerda e antes que a coisa azedasse, desci para a sala e depois de ler um bocado e vim aqui sentar-me a escrever o relato da insónia.
E eis que, de repente, a oiço atrás de mim primeiro e num assomo de audácia passa mesmo à minha frente sobrevoando o teclado. Sigo-a com o olhar e
(suprema satisfação, esta pertence às estúpidas)
lá está ela, a meio da parede mesmo por baixo do quadro com o Rossio estilizado que é da autoria do meu compadre Rogério.
Já vou de jornal dobrado para lhe dar com as notícias todas.Pás! Uma só pancada em cheio. Esmagada! Vitória tardia. Mas vitória! Uma enorme contrariedade. O rasto de sangue na parede!
Do meu sangue, ainda por cima... .

19 de agosto de 2016

(D)ESCREVER

IA FAZER SETE ANOS QUANDO FIQUEI SEM AS AMÍGDALAS, 
Nessa época arrancavam-se amígdalas a torto e a direito, numa operação redentora destinada a por o mutilado a coberto de futuras inflamações na garganta e consequentes febres.
O médico mandou-me sentar num banco, numa sala às escuras, na testa uma lâmpada de mineiro, pediu-me gentilmente para abrir a boca, colocou uma espécie de anel de metal que me impediu de a fechar de novo, puxou-me a língua para fora com uma mola de fixação, introduziu-me na garganta uma pistola com duas lâminas penduradas e zás, deitei fora num vómito dolorido, duas almôndegas ensanguentadas, para um recipiente esmaltado. Devo juntar que, como em muitas ocasiões e o meu caso foi uma delas, tudo isto se passou sem anestesia.

Confesso que não recordo bem os momentos seguintes mas a minha mãe dizia que as lágrimas lhe rolavam pelo rosto num arrependimento tardio enquanto eu permaneci sentado, choramingando, a seguir com o olhar, as minhas amígdalas que eram metidas num frasco cheio de um líquido incolor.
Como a cicatrização era dolorosa e eu já sabia escrever em letra de imprensa, quando cheguei a casa, tinha um bloco de folhas brancas e uma lapiseira com o rato mickey à minha espera e, também, aquele autocarro vermelho, de dois pisos que eu tinha visto na montra de uma loja na Graça e que era igual aos nossos que eram verdes e enormes que faziam a minha alegria quando andava com o meu pai e a minha mãe, no banco da frente do primeiro andar a ver tudo de cima e ao nível das varandas dos primeiros andares dos prédios que passavam por mim nas ruas, durante a viagem, quando íamos a Sapadores visitar a minha avó.
Como o médico tinha advertido os meus pais de que iria ter uns dias seguintes algo dolorosos e que provavelmente evitaria falar muito, resolvi abusar o mais que pude da escrita e da minha mãe que na sua infinita compaixão se aprestava a satisfazer todas as vontades escritas, sempre com um sorriso carinhoso.

Mas tardava em falar(a minha mãe não sabia que eu já falava alto, comigo mesmo) com a desculpa escrita de que não conseguia, Quando voltei ao médico, uma semana depois, um atento exame à minha garganta arrancou-lhe uma exclamação positiva.
"Está excelente; a cicatrizar muito bem!"
Mas a minha mãe com a timidez que a angústia não deixou calar.
"O senhor doutor, desculpe, mas acha que o meu filho poderá ter alguma lesão na fala, nas cordas vocais, não sei....é que ele não diz nada, só uns sons, desde que foi operado." 
O médico sorriu atrás dos óculos e da lâmpada de mineiro que parecia ter sempre colada à testa.
"Não se preocupe minha senhora. O seu filho está óptimo. Ainda o vai mandar calar muitas vezes."

9 de agosto de 2016

DE REPENTE, NO ESCURO DA NOITE







De repente, no escuro da noite 
uma luz tremula no fundo da mata densa
um vulto corre do fundo da noite, para a noite funda,
perseguido pelo seu próprio crime.
Uma sirene toca um quarto de hora depois.
Portas que batem, janelas que se abrem
nas casas espalhadas pelas ruas da vila. 
Há uma correria de botas sobressaltadas
de vozes estremunhadas, de rostos apressados
A encosta explode num vermelho dantesco
o fumo, pano de cinzas, fez fugir lua e estrelas 
e lá no alto, lá ao longe, um sino toca a rebate.
O enorme carro vermelho voa, estrada abaixo, 
num coro de luzes azuis e guinchos estridentes
leva rostos estremunhados, vozes sobressaltadas
descanso interrompido de um sono apressado.
Nas casas que ficam para trás, pelas ruas da vila,
as janelas vão-se fechando numa angústia lenta
Há vultos que ficam por detrás das vidraças
espreitando a noite iluminada, numa esperança atenta
e o enorme carro vermelho, na vertigem da pressa
voa em estridentes avisos azuis, para o inferno!

13 de julho de 2016

UM FANTASMA BENFEITOR


NA TASCA DO ZEFERINO, a mesa do canto, tampo forrada com uma flanela verde que sobrara de um velho bilhar desmantelado, cor comida pelo tempo e algumas rodelas arroxeadas, marcas de copos e canecas do excelente tinto de Bons Ares de Cima que o entusiasmo, por vezes, fazia transbordar mais do que o próprio. 
Reservada para as partidas de sueca, sentava nos seus quatro lados, especialistas que se divertiam e divertiam quem assistia à 'jogatana' e pretexto para troca de piadas e comentários.
Naquela noite, o Zé 'Torto' (de nascença, uma malformação nas costas que impedia-o de se endireitar) era parceiro do Prudêncio 'Pisa' (tinha a perna esquerda mais curta que a direita e andava sempre inclinado como a conhecida torre italiana) em noite de fortuna tinham dado uma abada ao Lino da Funerária e ao Manel da Botica.
"Ó parceiro, ora bota aí mais um para fechar", disse o 'Pisa' para o 'Torto' que marcava depois de ter contado os pontos feitos.
"Bem, por hoje já chega!", disse o Lino. "Pago eu esta rodada e ala que se faz tarde...já me doem as cruzes."
Tónio 'Lérias', um contador de histórias fantásticas e fantasiosas sempre de caneca cheia, fez-se ouvir para fechar a noite.
"Por falar em cruzes...já sabem do fantasma do cemitério, que aparece ao bater da meia noite nas noites de lua nova?"
Insistiu o Tónio: 
"Dizem que é o fantasma benfeitor do doutro Cebola... lembram-se dele? Garante a Amélia Bruxa que lhe apareceu uma luz e ouviu uma voz cavernosa quando lá passou a perguntar-lhe o que tinha e ela disse o que a apoquentava e acto contínuo ficou curada do eczema nas pernas e no mês passado a Maria Marquesa que estava com uma tosse danada, foi o mesmo, passou por lá e ficou boa...e há mais...."
Todos se lembravam do saudoso médico da terra que, diziam os mais velhos, era milagreiro e curava só com as mãos. 
Olharam-se os presentes, uns que sim, outros que nem por isso mas muitos opinaram e todos se despediram sem mais.
O Zé 'Torto' meteu pernas a caminho com o 'Pisa' a coxear a seu lado, pois eram quase vizinhos e assim seguiam juntos uma boa parte do caminho. Separavam-se onde a estrada bifurcava e enquanto o 'Pisa' ia pela esquerda, o 'Torto' virava pela direita e cem metros à frente estava em casa.
Mas, naquela noite de lua nova quando olhou para o relógio faltavam cinco minutos para a meia noite e a história do 'Lérias' bailava-lhe na cabeça. E. se a história do fantasma fosse a sério? AH! Afastou a lembrança como quem afasta uma mosca que logo voltou à memória e resoluto, torceu a rota e dirigiu-se ao cemitério que não ficava longe.
À medida que se aproximava, as pernas tremiam e a 'marreca' parecia pesar-lhe ainda mais, tanto que nunca de tão curvado que estava, o nariz estivera tão perto da barriga.
Foi quando, num repente, uma luz mais forte que um relâmpago se acendeu por detrás de um dos jazigos e uma voz se fez ouvir como um eco.
"Quem és tu?"
O 'Torto' quase fugia de surpresa e de medo mas encheu-se de cor e conseguiu articular timidamente:
"Eu....eu...sou o José, mais conhecido pelo...pelo 'Torto'...."
A voz voltou com a luz:
"Ah! És então o 'Torto'! E o que levas tu às costas?"
O 'Torto', num esforço, empertigou-se o que pôde e sem tirar os olhos do caminho, levou o braço atrás enquanto respondia.
"Às costas? O que levo......só se for a marreca...."
A voz e a luz cresceram de intensidade:
"ENTÃO DÁ-ME A TUA MARRECA!!!!!"
O 'Torto' sentiu como que alguma coisa lhe aspirava as costas e de repente sentiu-se leve, sem dor alguma, sem peso e crescera uns vinte centímetros, tanto que até sentiu uma vertigem.
A luz foi-se e a voz também! E a marreca desaparecera....
Sem caber em si de uma alegria incrédula logo correu em direcção a casa para dar a boa nova à mulher e aos filhos e nessa noite, em casa, ninguém não dormiu tal foi a excitante nova como se a lotaria tivesse milagrosamente saído a quem não jogava.
Na manhã seguinte, toda a vila comentava, pois o Zé ?Torto' que agora já não estava torto, parecia outro e ninguém o teria conhecido se o rosto não fosse o mesmo de sempre, embora muito mais sorridente. 
Era uma alegria incontável!
O Zé 'Torto' passara a estar mais direito que um fuso.
O amigo Prudêncio 'Pisa' ficou muito interessado, claro, e perguntou, questionou, riu, abraçou o amigo, um abraço a sentir-lhe as costas tão direitas.
E, nessa noite, sem dizer nada a ninguém, aproveitou ainda o facto de a lua ser apenas um risco ainda ligeiro no céu estrelado e ao bater das doze na torre da igreja, aí estava ele, coxeando, a passar à porta do cemitério.
O tal relâmpago inundou o escuro e a voz deixou-o pregado ao chão. Tal como o 'Torto' contara, a primeira pergunta: 
"QUEM ÉS TU????????"
O 'Pisa' olhou por cima do ombro mas só via a luz que o cegava.
"Chamo-me Prudêncio. Pi......."
E ia a acrescentar a alcunha pela qual era conhecido quando a voz voltou e a luz estremeceu:
"E O QUE LEVAS ÀS COSTAS, PRUDÊNCIO?"
Surpreendido pela pergunta que julgava fosse mais dirigida para a visível enfermidade, Prudêncio hesitou mas resolveu responder:
"O que levo às costas? Mas...às costas não levo nada e...."
A luz ganhou uma intensidade enorme e a voz pareceu quase um trovão, de tão forte se fez ouvir:.
"ENTÃO FICA COM ESTA MARRECA!!!!!!!!!!"

18 de junho de 2016

VEM, MEU AMOR, SENTAR-TE COMIGO



Vem sentar-te comigo, à beira rio
ver a vida que passa na torrente
onde o céu espelha, mansamente,
a palidez do dia, levemente dourada,
enquanto o Verão que amanhece.

Vem sentar-te comigo, à beira rio
ouvir a melodia que chega de repente
das margens da floresta, suavemente,
de felicidade, eternamente afinada
enquanto o nosso amor acontece.

Vem, meu amor, sentar-te comigo..



16 de junho de 2016

SABE O QUE É D.A.D.I.? NÃO? ENTÃO EU EXPLICO!


Hoje decidi lavar o carro. Dirijo-me à garagem. Mas, ao apanhar a chave da garagem no chaveiro junto à porta reparo que há cartas por abrir sobre a mesa por baixo do espelho veneziano que o meu avô tinha comprado num leilão, na entrada, onde está também a jarra com flores e aquela pequena terrina Vista Alegre que os tios ofereceram no dia do casamento. Já passaram quarenta e quantos anos? Sete ou oito? Bom, isso agora não importa nada. 
Resolvo, então, abrir as cartas antes de lavar o carro!
Pouso as chaves do carro e da garagem em cima da mesa junto da terrina e regresso à sala com o pequeno monte de cartas que deixo em cima da mesa baixa junto ao sofá, enquanto procuro o estilete para abrir os sobrescritos.
Mas, olho melhor o correio e noto uma série de prospectos e de 'flyers' com publicidade a tudo e mais alguma coisa. Tenho afixado na caixa do correio o dístico de 'favor não deixar publicidade' mas não resulta. Resolvo, então, que é melhor desfazer-me primeiro daquilo e dirijo-me à cozinha para deitar os papéis no recipiente respectivo.
Mas, logo a seguir, veio-me pensamento mais racional.
Já que tenho de abrir os sobrescritos, faço isso primeiro, vejo o que há para fazer e no fim livro-me dos papeis todos de uma vez. Há facturas da electricidade e gás para pagar e a prestação à sociedade financeira, do empréstimo que pedi no mês passado para arranjar o telhado da garagem.
É melhor despachar isto primeiro. Dirijo-me ao escritório onde tenho o 'pc' para poder pagar através do 'home banking'. 
É quando vejo em cima da mesa a garrafa de cerveja mini ao pé do pratinho com duas madalenas e umas migalhas que ficaram ontem do lanche, com certeza. Já não me lembro bem! Decido, então que é melhor levar aquilo para a cozinha, antes do mais, e ir buscar um pano para limpar a mesa das migalhas que caíram do prato.
Só então reparo que deixei os óculos na mesa baixa e não vejo o comando da televisão que me recordo de ter deixado, ontem, no sofá. Vou buscar os óculos e afinal o comando não está no sofá!
É melhor encontrá-lo antes que ela venha da caminhada e queira ver o programa da Júlia ou outra porcaria qualquer. Dou a volta pela sala e nada...
De repente lembro-me de que o tinha visto numa das cadeiras junto à mesa. Vou buscá-lo antes que me esqueça do sítio onde o vi e ela chegue.
Toca o telemóvel. É o meu! Onde é que ele está mesmo? Sigo o ruído do toque - aquela música dos Beach Boys, lá lá lá, como é que se chama? - Ahhhhhhh! Como raio foi o telemóvel parar à prateleira onde está o relógio com a bailarina que pertenceu à minha tia? Bem, não interessa!
Atendo! É ela! Avisa-me de que ainda vai passar pelo mercado e pede-me para ir buscá-la ao café daqui por uma meia hora! OK! É melhor despachar-me depois de ir à casa de banho...
Afinal, ainda vou ter de me vestir. Vinte minutos depois estou pronto para sair mas....
Não encontro os óculos. Então e as chaves do carro? Talvez as tenha deixado no carro. Não é costume, mas... o pior é que não encontro a chave da garagem!
O melhor é ligar-lhe de volta e perguntar se mexeu na chave.
Mas como vejo a porcaria dos números no telemóvel? Onde será que deixei a merda dos óculos...

D.A.D.I. é DEFICIÊNCIA DE ATENÇÃO DEVIDO À IDADE!
também há quem reduza a uma simples PDI....

Ou seja: não lavei o carro, perdi a chave da garagem e já agora as do carro, não paguei as facturas, a garrafa mini, as madalenas e as migalhas continuaram em cima da mesa.
Ela teve de vir a pé com o saco de compras e chegou pior que uma barata, cansadíssima atirou-se para cima do sofá e começou logo a mandar vir com a papelada toda em cima da mesa.
E o pior foi quando quis ver a Júlia e eu não sabia do comando....
AH! A merda dos óculos? Tinha-os espetados no alto da cabeça!

7 de junho de 2016

COM UM ENCOLHER DE OMBROS

Com um encolher de ombros
adiamos aquele encontro
porque achamos que amanhã, ainda é vez;
com um encolher de ombros adiamos aquela conversa

porque achamos que amanhã, talvez;
com um encolher de ombros adiamos aquele pedido de desculpas
porque achamos que amanhã, será melhor
com um encolher de ombros adiamos aquele abraço e aquele beijo
porque achamos que amanhã, ainda é tempo!

Com um encolher de ombros vamos adiando aquele amanhã
porque achamos que quanto mais amanhã for,
por esquecimento, por cansaço da dor
com um beijo e um abraço, tudo irá passar.


Com um encolher de ombros
cuidado que o amanhã pode não chegar...

20 de maio de 2016

CAMINHOS PARALELOS


Ficaram paralelos, os caminhos,
à distância de um braço
à distância de um afago
à distância de tão pouco
à distância de um beijo
à distância dum desejo
à distância de um passo.
Andamos lado a lado,
finges que não me vês
e finjo que não te vejo.
tu e eu, num silêncio calado
Ficaram paralelos, os caminhos
e ficaram esquecidos carinhos.

16 de maio de 2016

UM DESEJO


O vento calou-se quebrado num repente.
e o céu ficou limpo de algodão

numa pincelada de azul transparente, 
A água voltou a correr só pelo chão
deixou de andar pelo ar, de cair do céu
de inundar o meu coração.
O mercúrio voltou a trepar a escala
por todo o lado, o grito das flores
num cenário salpicado de cores.
O voo veloz, irregular, da passarada
num espalhafato de miúdos traquinas
como os jogos de apanhada.
É a minha alma que rejuvenesce
nesta pressa de afastar o que entristece
no cinzento dos dias e no frio de esquinas.
Um desejo da Primavera que se anuncia!

13 de abril de 2016

PRIMEIRO BEIJO


A noite, de ínfimos pontos brilhantes, ilimitada.
A cair para trás do monte, uma meia lua afogueada
A respiração é aperto de coração aprisionado
e o teu corpo, no meu abraço, aprisionado
As minhas mãos à procura de mais que mãos
Olho-te na lentidão de quem não quer que o tempo ande
e pela cabeça passa-me um impulso fascinante.
As nossas bocas entreabertas aproximam-se
e os nossos lábios tocam-se, breve arrepio.
Depois, esfregam-se numa espécie de dança
Entregam-se como corpos que fazem amor.
de quem não se quer largar nunca mais.
Há brilho de estrelas a caírem pela noite.

21 de março de 2016

(RE)AMANHECER


Um clarão explode a leste no cimo da encosta
desce entre pinheiros, gigantes vagabundos
numa sinfonia de sombras, de costa a costa,
até se espelhar na serenidade do rio, nas mimosas,
a incendiar as margens, numa desordem de ouro.



Corpos menos jovens por tantas primaveras gastas,
gestos mais lentos por tantas primaveras esquecidas.
Mas...amanhece o tempo da primeira vez, 
de quem não precisa de mais nada para se ter
no silêncio das palavras que já não é preciso dizer.


16 de março de 2016

UMA LEGENDA (talvez demasiado comprida) PARA A FOTO DO MEU "ALBÚM DE FALHAS DE MEMÓRIA"


Quando a encontrei em casa de minha mãe, há uns largos anos, a foto perdia-se no meio de muitas outras mas quando lha pedi para fazer uma cópia; qual cópia!? Levaria aquela do avô que eu mal recordava visto ter falecido, ainda eu não completara os cinco anos.
Portanto, aquela foto era a última que existia com o meu avô e os dois únicos netos. O João e eu. No verso, o local e a data, com a letra grande e trémula da minha avó, talvez escrita com aquelas canetas antigas,
um grande aparo de molhar num tinteiro daquele azul 'Quink'.

"Senhora do Monte da Graça", 18 de Março de 1953

Esteve, anos e anos, guardada no album de família, até que um dia, não posso precisar qual, encaixilhada, saltou para a prateleira mais alta, á frente dos seis volumes da obra completa de Vítor Hugo e assim ficou em lugar de destaque, apesar de todas as mudanças de casa, de novos arranjos decorativos, de diferente disposição dos móveis pelas salas, etc.

"Senhora do Monte da Graça", 18 de Março de 1953.

63 anos...Faltavam poucos dias para a Primavera quando a Primavera não falhava o equinócio como agora que se atrapalha em demasia nas voltas de um clima transtornado..
O meu avô Adriano já minado pela doença que lhe dizimou o pâncreas e outros órgãos vitais e acabou com as suas últimas forças, viria a morrer seis meses.
O meu primo João, mais velho do que eu 12 anos e uns meses, naquela pose de galã cinematográfico, no seu belo fato domingueiro e gravata às riscas nó aprumado, Eu, o puto, de pernas magricelas e olhar enrugado pelo Sol, na borda do banco com a mão protectora do avô Adriano.
Estar horas seguidas com ele a mostrar-me revistas de instrumentos musicais do negócio da Casa Valentim de Carvalho, cuja loja na Rua Nova do Almada, em Lisboa, ele esteve à frente durante várias décadas. e eu a ouvir as diferenças entre um piano e uma pianola ou porque grafonolas produziam música a partir duns discos grossos feitos de plástico e uns riscos onde uma agulha, semelhante à da máquina de costura da minha avó, encalhava e girava até acabar no centro..
E, o meu primo João, que foi aquele irmão que eu não tive e eu para ele também o irmão mais novo que ele não teve, nos jogos de futebol que fazíamos na marquise da casa com as balizas na porta da casa de banho e na porta da despensa, para desespero da minha mãe quando, ainda por cima, o meu pai fingia ser um árbitro de jogos que só por milagre não produziam estragos.
Ambos tiveram mortes prematuras e dolorosas que senti, claro, de maneira e intensidade diferentes.
 
Mas, hoje quando olho aquela foto 'à la minute' sinto que é uma daquelas que diz muito mais marca que o instantâneo em que um avô e dois netos se sentaram a desfrutar uma tarde de pré Primavera no miradouro da colina mais alta de Lisboa!
Ela é toda a história de todos os anos vividos que a minha memória não reteve mas pode imaginar como foram bons com aqueles dois excelentes companheiros.....

10 de fevereiro de 2016

DESABAFO



Está tudo tão estranho (esta noite)
A lua ausente quando costuma estar pendurada na janela
e o céu numa capa de veludo negro
quando costuma ser pano bordado de missangas cintilantes;
Não me venhas com truques, nem subtilezas,
mascarada de velha bruxa, só porque é carnaval!
Não me venhas iludir certezas
nem mostrar as chagas da natureza.