13 de julho de 2016

UM FANTASMA BENFEITOR


NA TASCA DO ZEFERINO, a mesa do canto, tampo forrada com uma flanela verde que sobrara de um velho bilhar desmantelado, cor comida pelo tempo e algumas rodelas arroxeadas, marcas de copos e canecas do excelente tinto de Bons Ares de Cima que o entusiasmo, por vezes, fazia transbordar mais do que o próprio. 
Reservada para as partidas de sueca, sentava nos seus quatro lados, especialistas que se divertiam e divertiam quem assistia à 'jogatana' e pretexto para troca de piadas e comentários.
Naquela noite, o Zé 'Torto' (de nascença, uma malformação nas costas que impedia-o de se endireitar) era parceiro do Prudêncio 'Pisa' (tinha a perna esquerda mais curta que a direita e andava sempre inclinado como a conhecida torre italiana) em noite de fortuna tinham dado uma abada ao Lino da Funerária e ao Manel da Botica.
"Ó parceiro, ora bota aí mais um para fechar", disse o 'Pisa' para o 'Torto' que marcava depois de ter contado os pontos feitos.
"Bem, por hoje já chega!", disse o Lino. "Pago eu esta rodada e ala que se faz tarde...já me doem as cruzes."
Tónio 'Lérias', um contador de histórias fantásticas e fantasiosas sempre de caneca cheia, fez-se ouvir para fechar a noite.
"Por falar em cruzes...já sabem do fantasma do cemitério, que aparece ao bater da meia noite nas noites de lua nova?"
Insistiu o Tónio: 
"Dizem que é o fantasma benfeitor do doutro Cebola... lembram-se dele? Garante a Amélia Bruxa que lhe apareceu uma luz e ouviu uma voz cavernosa quando lá passou a perguntar-lhe o que tinha e ela disse o que a apoquentava e acto contínuo ficou curada do eczema nas pernas e no mês passado a Maria Marquesa que estava com uma tosse danada, foi o mesmo, passou por lá e ficou boa...e há mais...."
Todos se lembravam do saudoso médico da terra que, diziam os mais velhos, era milagreiro e curava só com as mãos. 
Olharam-se os presentes, uns que sim, outros que nem por isso mas muitos opinaram e todos se despediram sem mais.
O Zé 'Torto' meteu pernas a caminho com o 'Pisa' a coxear a seu lado, pois eram quase vizinhos e assim seguiam juntos uma boa parte do caminho. Separavam-se onde a estrada bifurcava e enquanto o 'Pisa' ia pela esquerda, o 'Torto' virava pela direita e cem metros à frente estava em casa.
Mas, naquela noite de lua nova quando olhou para o relógio faltavam cinco minutos para a meia noite e a história do 'Lérias' bailava-lhe na cabeça. E. se a história do fantasma fosse a sério? AH! Afastou a lembrança como quem afasta uma mosca que logo voltou à memória e resoluto, torceu a rota e dirigiu-se ao cemitério que não ficava longe.
À medida que se aproximava, as pernas tremiam e a 'marreca' parecia pesar-lhe ainda mais, tanto que nunca de tão curvado que estava, o nariz estivera tão perto da barriga.
Foi quando, num repente, uma luz mais forte que um relâmpago se acendeu por detrás de um dos jazigos e uma voz se fez ouvir como um eco.
"Quem és tu?"
O 'Torto' quase fugia de surpresa e de medo mas encheu-se de cor e conseguiu articular timidamente:
"Eu....eu...sou o José, mais conhecido pelo...pelo 'Torto'...."
A voz voltou com a luz:
"Ah! És então o 'Torto'! E o que levas tu às costas?"
O 'Torto', num esforço, empertigou-se o que pôde e sem tirar os olhos do caminho, levou o braço atrás enquanto respondia.
"Às costas? O que levo......só se for a marreca...."
A voz e a luz cresceram de intensidade:
"ENTÃO DÁ-ME A TUA MARRECA!!!!!"
O 'Torto' sentiu como que alguma coisa lhe aspirava as costas e de repente sentiu-se leve, sem dor alguma, sem peso e crescera uns vinte centímetros, tanto que até sentiu uma vertigem.
A luz foi-se e a voz também! E a marreca desaparecera....
Sem caber em si de uma alegria incrédula logo correu em direcção a casa para dar a boa nova à mulher e aos filhos e nessa noite, em casa, ninguém não dormiu tal foi a excitante nova como se a lotaria tivesse milagrosamente saído a quem não jogava.
Na manhã seguinte, toda a vila comentava, pois o Zé ?Torto' que agora já não estava torto, parecia outro e ninguém o teria conhecido se o rosto não fosse o mesmo de sempre, embora muito mais sorridente. 
Era uma alegria incontável!
O Zé 'Torto' passara a estar mais direito que um fuso.
O amigo Prudêncio 'Pisa' ficou muito interessado, claro, e perguntou, questionou, riu, abraçou o amigo, um abraço a sentir-lhe as costas tão direitas.
E, nessa noite, sem dizer nada a ninguém, aproveitou ainda o facto de a lua ser apenas um risco ainda ligeiro no céu estrelado e ao bater das doze na torre da igreja, aí estava ele, coxeando, a passar à porta do cemitério.
O tal relâmpago inundou o escuro e a voz deixou-o pregado ao chão. Tal como o 'Torto' contara, a primeira pergunta: 
"QUEM ÉS TU????????"
O 'Pisa' olhou por cima do ombro mas só via a luz que o cegava.
"Chamo-me Prudêncio. Pi......."
E ia a acrescentar a alcunha pela qual era conhecido quando a voz voltou e a luz estremeceu:
"E O QUE LEVAS ÀS COSTAS, PRUDÊNCIO?"
Surpreendido pela pergunta que julgava fosse mais dirigida para a visível enfermidade, Prudêncio hesitou mas resolveu responder:
"O que levo às costas? Mas...às costas não levo nada e...."
A luz ganhou uma intensidade enorme e a voz pareceu quase um trovão, de tão forte se fez ouvir:.
"ENTÃO FICA COM ESTA MARRECA!!!!!!!!!!"