4 de dezembro de 2017

NÃO EXISTE UM CAMINHO SÓ NOSSO

Quando fazemos o nosso caminho, 
notamos que ele é constantemente percorrido por outros 
ou ainda por alguns outros que nele se cruzam
sem que possamos evitar que isso não suceda..
Por isso, muitas vezes, podemos duvidar se esse é o caminho que realmente escolhemos como nosso ou se 
afinal optamos por um caminho 
que está a ser feito por outros.

14 de novembro de 2017

QUANDO FOI QUE ADORMECI?

Não. Não é insónia. 
Insónia é quando queremos dormir e não conseguimos.
Aqui, sou eu mesmo que não durmo porque não quero..
Finjo que durmo mas não durmo.
Deito-me, simplesmente. Fecho os olhos. Escuto o silêncio.
Depois penso em algo que gostava que acontecesse
ou simplesmente uma vida inventada,
no escuro interior da minha cabeça, da minha imaginação
e por aí fora, como num filme, sem imagem nem som
uma história que começo a contar a mim mesmo.
uma história que sou eu que faço e me agrada
apesar de ter de fingir que não sei o fim
para não lhe tirar aquele interesse que a vida tem.
porque é uma história de vida.
A minha! Aliás, uma história de vida que não é minha
embora imaginada por mim para que pudesse ser.
Projectos, planos, momentos colados uns aos outros
É uma boa altura. Está tudo tão sossegado, tão quieto.
que sou capaz de ouvir a imaginação a trabalhar
....e depois adormeço...tranquilamente, sem imaginação.
Nunca sei em que preciso momento em que isso acontece
mas sei que acontece porque depois, acordo.
E embora nem pense já no que pensei antes de adormecer
sinto-me feliz, sobretudo, por acordar para a vida real
onde também há vidas inventadas...

6 de novembro de 2017

DEPRESSÕES

Uma estranha prostração, uma imobilidade cansada
permaneço deitada, sem reacção a nada!
Neste refúgio de olhos abertos sem nada ver
nesta vontade de querer não querer.
A tarde, numa lenta agonia,
apenas aguarda a noite, o luto do dia.
Apetece-me estar, ficar nesta estranha prostração,
nesta imobilidade cansada, sem reacção.
A realidade ficou tão diferente, desde que partiste...


4 de novembro de 2017

SERIA BEM MAIS FÁCIL

Se não fosse tão gago seria tão fácil dizer-te que passo as noites a sonhar contigo, que te amo que nem um louco se é que amar como um louco seja aconselhável, como gostaria tanto namorar contigo, sei lá, talvez até de me casar contigo. Todas as manhãs apanho o autocarro das oito e dez e duas paragens depois quando tu entras já eu tenho o coração a bater como deve bater um coração depois de correr uma prova de obstáculos e tenho as palavras todas enfileiradas na cabeça

(gosto tanto de ti, queres namorar comigo? e se casássemos já!)

na minha cabeça as palavras não gaguejam e eu digo tudo sem interregnos que pena tu não poderes ouvir o que eu penso e lá estás tu na tua paragem duas paragens depois da minha, à espera do autocarro das oito e vinte que é o mesmo que o meu que é o das oito e dez, duas paragens antes e entras, olhas para mim, tenho a certeza que é para mim e eu que já tenho o coração com dez minutos de uma ansiosa corrida de obstáculos e vamos os dois e mais não sei quantos passageiros pendurados nas argolas, hora de ponta, autocarro à pinha mas não interessa nada porque só te vejo a ti, linda, maravilhosa, eu com as palavras na cabeça tão certinhas para te dizer

(gosto de tanto ti, queres namorar comigo? e se casássemos já!)

vinte minutos pendurados nas argolas em equilíbrios de bêbedos, nunca estive bêbedo porque sendo gago e bêbedo deve ser muito mau, e chega a nossa paragem, saímos empurrando outros que nos empurram, esgueiramo-nos por entre os que vão continuar pendurados nas argolas e olhas para mim, tenho a certeza que é para mim, mas eu hesito (e se não?!) e gaguejo um sorriso mas já vais em passo apressado em direcção ao largo, à loja de ferragens onde és a 'menina da caixa' e vou no sentido oposto, ainda olho para ver se te vejo mas já não estás ali e sigo em direcção ao ministério onde passo o dia a alinhar os números, a tratar dados, a produzir estatísticas de tudo sobre tudo e a pensar como seria tão bom se tu pudesses ouvir o que eu penso

(gosto de tanto ti, queres namorar comigo? e se casássemos já!)

e chega o fim da tarde, do dia de trabalho, como sais sempre depois de mim, vou ao café tomo uma bica, compro o jornal, espreito à porta da pastelaria, vejo-te ao fim da rua, a vir do largo, da loja de ferragens e chega o autocarro, o mesmo que o meu porque eu espero pelo teu, é hora de ponta mas eu não me importo porque assim estou mais tempo contigo, meia hora de caminho, eu com o jornal dobrado debaixo do braço, também não gaguejo a ler mas só quando leio só para mim, regressamos às argolas e eu achar que tu me sorris e eu não sei se hei-de sorrir, não, não afinal é impressão minha, mas olhaste de certeza que olhaste e sais na tua paragem e eu fico mais duas paragens, com as palavras a saltarem-me da cabeça, na borda dos lábios em fileira sem gaguejar

(gosto de tanto de ti, queres namorar comigo? e se casássemos já!)

e chego ao meu minúsculo 'tê um' onde vivo só com a minha gaguez, com um quarto e uma sala com uma 'kitchenette' que mal dá para estrelar um ovo mas que parece tão grande, enorme e vazio, desaconchegado e imagino-me contigo ali junto à janela, a vermos ao longe as luzes da ponte e dos carros na ponte e tu a encheres de alegria o meu 'Têum', a aconchegares o meu amor com os teus olhos doces, a dizeres-me aquilo que eu não consigo dizer-te sem gaguejar

(gosto tanto de ti, queres namorar comigo? e se casássemos já!)

há uns meses atrás, ao almoço, o Osório, almoço sempre com o Osório porque é meu amigo e tem paciência para aturar a minha gaguez, disse-me que treinasse dizer tudo a cantar porque era mais fácil e que respirasse fundo, descontraísse e eu tenho treinado mas depois lembro-me que és capaz de pensar que estou louco por dizer-te que gosto de ti, a cantar e perguntar se queres namorar comigo, a cantar, e pedir-te em casamento, a cantar e fico logo nervoso só de pensar, como me posso descontrair se, quando te vir amanhã no autocarro e te disser a cantar

(gosto tanto de ti, queres namorar comigo? e se casássemos já!)

se eu não fosse tão gago, seria tão mais fácil



... 

3 de novembro de 2017

EM NOVEMBRO,


EM NOVEMBRO, 
As noites são mais longas do que a claridade
Deito-me e sonho contigo, engano meu
se, apenas, queria ser um sonho teu.
tão leve como a luz sem peso nem forma.
tão suave como o ar que em tudo se torna
o amor por ti, é aquele sonho meu
que brilha e respira, além da eternidade.

1 de novembro de 2017

QUANDO A TERRA COMEÇAR A TREMER

CHAMAVA-ME ISMAEL PORTAL sapateiro com loja na rua dos Mercadores, quando se ia para a Ribeira das Naus, mais ou menos a meio caminho. Tinha dois aprendizes que faziam as entregas dos arranjos e também encomendas de sapatos e botas para a Corte de El Rei. 
Vivia no andar por cima da loja, com a minha esposa Beatriz, mãe das minhas filhas amadas Isabel e Mafalda. O meu filho Afonso, partira havia seis meses na nau Glória, rumo a terras de Vera Cruz e enviara carta, há duas semanas, que estava de boa saúde e partiria para o Sertão em caravana em demanda de ouro que, segundo se dizia, eram de abundância naquelas paragens.
Éramos felizes e estávamos num bom momento das nossas vidas..
Em breve seria o casamento de Isabel. com Rodrigo que servia na Guarda Real tendo conhecido Isabel que era, por sua vez, aia da princesa Maria.
MAS A TERRA IRÁ TREMER, pelas primeira horas da manhã quando a maior parte da população estiver nas igrejas e cemitérios já que é feriado e dia de Todos os Santos.
Primeiro um ronco fará estremecer os nossos corações, brotando debaixo de nós, debaixo do chão, de todo o chão, de todo o lado. Depois, tudo começará a abanar; casas que desabarão e logo se transformarão em montes de pedras e madeiros com os moradores nas ruas num terror desmedido enquanto outros ficarão logo ali, debaixo dos escombros. O chão abrir-se-á em fendas até ao inferno e as calçadas enrolar-se-ão como se de tapetes se tratasse. Para os lados da Sé rebentará incêndio que se propagará. e serão mais casas que arderão como archotes pela encosta até ao castelo.
Os céus fechar-se-ão num breu aterrador e por baixo dos nosso pés, o chão depois de uns momentos de quietude voltará a tremer e a provocar mais ruínas, mais incêndios; pessoas e animais que desaparecerão nas brechas abertas.


O PÂNICO LEVARÁ A MULTIDÃO para o Terreiro do Paço, porque se trata de local arejado e amplo e haverá soldados da Guarda Real que tentarão por alguma ordem e organizar socorro às vítimas. Pequenos grupos de homens e mulheres tentarão desesperadamente com baldes, panelas e outros utensílios que puderam encontrar, apagar alguns incêndios enquanto muitos outros andarão a correr de um lado para o outro sem préstimo mas apenas movidos pelo terror. Mas os incêndios por toda a cidade não pararão de aumentar. Milhares de velas colocadas para iluminar santos e altares por ser dia de Todos os Santos.

É ENTÃO QUE UM GRANDE CLAMOR ecoará no terreiro e logo centenas de pessoas se atropelarão numa corrida para as ruas que sobem para o castelo e para o bairro alto por cima das próprias ruínas e dos desgraçados que caíam no pânico da fuga. enquanto outros num pavor extremo encontrarão a morte já ali junto ao rio. Uma onda enorme tapando a visão do céu, vinda do lado da ribeira das naus, trazendo barcos grandes e pequenos, pedras, restos de árvores e destroços sem nome tudo arrasará, Mais alta que as casas, tudo abafará no fragor da pancada.


A ONDA IRÁ FAZER AINDA MAIS MORTES E SEMEARÁ AINDA MAIS HORROR e depois de uns momentos, outra se seguirá o rio subirá das margens depois de quase ter desaparecido e fará das ruas  um mar de destroços.
Beatriz, a minha mulher irá desaparecer, o mesmo sucedendo à nossa filha Mafalda, Um dos meus ajudantes será encontrado semanas mais tarde nos escombros da loja; do outro, nada se saberá mais. A minha filha Isabel sobreviverá uma vez que se encontrava com a família real em Caneças mas o noivo morrerá quando a empena de um prédio na rua dos douradores ruir no exacto momento em que ele se encontrar a tentar salvar um homem com uma criança ao seu colo.

QUANTO A MIM, ISMAEL PORTAL dirigia-me para a Sé à missa das nove quando tudo começará. Tentarei voltar para trás, já com o pânico instalado, mas serei atropelado por carruagem puxada a quatro cavalos que se espantarão, já que o cocheiro cairá do seu lugar e ficará ferido, ao meu lado, no meio da rua enquanto o rodado traseiro me passará sobre o peito e me quebrará o esqueleto deixando-me sem respirar. Acabarei por morrer quando segunda onda com os destroços acumulados pela primeira chegar ás portas de Santo António da Sé e tapar para sempre a luz.

NOTA FINAL. Ismael Portal nunca existiu mas esta minha ficção daquela trágica manhã do primeiro dia de Novembro de 1755, em que mais de 1/3 da população de Lisboa morreu ou desapareceu, e mais um número incontável de feridos pretende imaginar o relato de uma possível vítima de um dos terramotos seguido de maremoto dos mais violentos e mortíferos de toda a história...



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29 de outubro de 2017

PORQUE AMANHÃ É DOMINGO


AOS DOMINGOS íamos - o pai, a mãe e eu - almoçar a casa dos avós maternos que ficava para perto do largo da Graça, num rés do chão esquerdo, alto porque a rua era bem inclinada mas o prédio não. 
A viagem de eléctrico só valia a pena sentado no banco dos 'palermas', aquele banco junto à plataforma, com costas para a janela; eu ficava a olhar para quem estava no banco em frente; rostos silenciosos e inexpressivos; se olhavam para mim, escolhia entre um cândido sorriso e uma careta mais azeda conforme a cara do interlocutor me agradava ou não. 
Uns respondiam; outros, continuavam 'palermas'. 
A minha mãe que temia estas terríveis falhas na educação do 'isso parece mal', repreendia-me com um olhar furioso, enquanto o meu pai disfarçava um sorriso, escondido atrás do Diário Popular, com as notícias da véspera.
À tarde, depois do almoço,- sempre bacalhau cozido naquela enorme travessa de cavalinho verde esborratado, as batatas e feijão frade, ai feijão frade e ai batatas que me salvavam - se o tempo o permitia, o passeio até ao miradouro da senhora do monte. 
E era então que o meu avô me sentava no colo e conforme lhe ia apontando o casario, os barcos no rio, o castelo, o mosteiro, a sé catedral, o terreiro do paço, contava-me sempre qualquer história relacionada com ele.
Estava uma manhã de Sol quando me vi sentado no colo do meu avô, num banco de jardim virado para o rio, a ouvir-lhe curioso a história; mas tudo se evaporou quando acordei na obscuridade do quarto...
Da próxima vez que for a Lisboa, vou passar por lá!

22 de setembro de 2017

QUANDO SE ACORDA ANTES DA CASA.


A MANHÃ VEIO CINZENTA. Talvez ainda traga uma chuva a anunciar que o Verão já era e o Outono quer entrar apesar de todos sabermos, alguns por experiência e bem amarga que o clima está a mudar, um pouco por todo o lado, e não é para melhor; ontem quando espreitei a noite, antes de me deitar, não encontrei estrelas ou Lua e agora falta Sol...

ACORDEI ANTES DA CASA, as sete horas tinham começado o seu ciclo. Durante momentos, fiquei de olhos projectados no tecto, sentindo a respiração da companheira que conheci há mais de meio século - apenas o tempo que leva um fósforo a consumir-se na sua própria chama - e a recordar que no 22 de Setembro de 1970, uma terça feira - também a tinha ao meu lado, por esta hora, em Santiago do Cacém, num quarto de hotel no fim da terceira noite de uma lua de mel vivida ao ritmo alucinante que nos obrigava o facto de eu ter de estar em Mafra, logo na 6ª feira, para a 'segunda parte' da instrução militar.

QUANDO SE ACORDA ANTES DA CASA, como eu hoje, há lembranças que saem do silêncio dos móveis, dos quadros pendurados nas paredes, dos livros que se acomodam nas estantes, das fotos dos momentos que a nossa máquina do tempo ainda é capaz de recordar com a saudade que nos deixa felizes com aquele aperto no peito.

ACORDEI ANTES DA CASA e andei por aqui, meio perdido à espera que a manhã me apanhe e me empurre para o dia que já vi cinzento e cansado. Às vezes também me sinto assim! Cinzento e cansado. Hoje pode ser? Não! É melhor não....

4 de agosto de 2017

MARLINDA, LINDA MORENA DE OLHOS DE MAR

TARIFA ERA TERRA DE PESCADORES, no sul de Espanha um areal de cabanões de madeira à vista da praia e de uma dúzia de embarcações de pescadores que eram famílias de pescadores os do povoado a umas escassas doze léguas de Los Palos de La Frontera.
MARLINDA, filha de Sertório e de Tereza, linda morena com olhos de mar, serenos mais verdes que as águas onde os homens ganhavam o pão de cada dia. 

Comemorava, nessa noite de animada festa, os quinze anos, 
já maioridade atingida com a primeira menstruação que lhe aparecera há umas semanas, para alegria da mãe que logo anunciou a Sertório a necessidade da festa.

OS VÁRIOS MANJARES trazidos pelas mulheres da aldeia não passavam agora de restos esfrangalhados e dispersos, sem ordem nem gosto, pela enorme mesa de madeira, pasto para os cães e gatos tão fartos uns quanto os outros, dos ratos e dos restos do peixe que apanhavam dos donos.
OS OLHOS DO RAPAZ alto e sorridente, traje de marinheiro e um jeito de andar com um não sei quê de bailarino, viera de Los Palos, incendiaram-se quando se cruzaram com os de Marlinda para nunca mais se despegarem dos dela e os dela dos dele, o resto da noite, perante os comentários indiscretos das velhas e os gestos de desânimo e de ressentimento dos que esperavam da homenageada os olhares que ela só tinha para aquele que viera de fora e ali aparecera vindo da terra vizinha, segundo se apurou, sem mesmo por lá ter nascido ou se lhe conhecer parente; Braulio, assim se chamava o rapaz, dezanove anos, órfão de pai e de mãe, de terra estrangeira Cuba, povoação no interior do reino de Portugal, onde não havia mar que se visse nem olhos como os de Marlinda.
DANÇARAM TANTO E SEMPRE e como acertavam bem tantos nos viras, como nos bailes mandados ou nas rodas como se fossem par de há muito conhecido. os seus corpos tocavam-se, graciosos e ardentes, nos volteios e cresciam os sussurros mas Marlinda e Braulio, alheios a tudo, vertigem de paixão ansiosa e violenta. Tanta paixão para Braulio que viera à festa só para se divertir e para Marlinda que encontrara o seu primeiro amor, não impediu que o jovem abalasse de novo para Los Palos, ainda o Sol se não levantara pois era lá que iria para a sua grande aventura!
E, QUANDO NA MANHÃ DE 4 DE AGOSTO DE 1492 a frota capitaneada por Cristóvão Colombo largou do porto rumo ao mar infinito na esperança do novo mundo Braulio levava no coração a linda morena de olhos de mar e aquele momento de intensa paixão que tiveram na praia com o testemunho da Lua e das estrelas no pano do céu.
MARLINDA ficou na praia até a manhã acordar com o olhar longínquo, onde o risco do horizonte parece estar a dividir o mundo que diziam nunca ninguém alcançara por mais que se entrasse no mar! Mas ela pareceu ver, bem dentro do mar, perto do infinito, umas velas que se moviam numa pressa de ventos fortes. Era numa dessas velas que ia o seu amor de uma noite que nunca mais veria na sua vida, mas deixara a semente. que faria crescer o seu ventre e o escândalo da desonra que a expulsariam de Tarifa por muitos anos.

Só voltaria que a viu nascer quando o seu pai já era morto e alguém lhe deixou na porta um bilhete que dizia que sua mãe estava muito doente e que queria vê-la antes de morrer.
Entrou no casebre que cheirava a fumo e a doença trazendo pela mão um menino de olhos incendiados de mar, cabelos muito pretos endemoínhados e aquele jeito leve de andar que 
tinha um não sei quê de bailarino.

Os OLHOS DE TEREZA ganharam vida e tantas lágrimas, 

tantas depois de tanta seca que se juntaram às de Marlinda que numa voz embargada de comovida alegria, disse apenas
"Perdoa-me minha querida mãe!"
E, num soluço, estendeu a mão para o menino tímido:
"Este é o teu neto. Chama-se Braulio, como o pai dele"
E a velha mãe recebeu os dois nos seus frágeis braços
que num assomo de energia e de amor, voltavam a ter a idade da força!

NOTAS FINAIS:

Passam hoje 525 anos sobre a data que marca a partida de Cristóvão Colombo, de Los Palos (actual Cádis) ao serviço dos reis católicos de Espanha, Fernando e Isabel, comando a armada que iria descobrir o novo mundo.
A história de Marlinda, imaginei-a numa probabilidade, por certo, tão longínqua como o 'risco que divide o mundo' que nunca se alcança...



3 de agosto de 2017

ÀS VEZES TEMOS DE CONTAR CARNEIROS...


MOHAMED JAMAL AL-KHALIL, Califa de Hafar al-Batin, uma fortaleza rodeada por uns milhares de casebres no norte do oceano saudita, de areias escaldantes, mas muito perto das águas amenas do golfo onde', aliás, se deslocava frequentemente com as suas dezoito belas e jovens esposas e os vinte e sete filhos e mais todos os serviçais do palácio; apesar das enormes riquezas que possuía e da vida faustosa que levava, era atreito a insónias e tinha imensa dificuldade em adormecer. 
Um dia, o seu conselheiro mais íntimo pareceu encontrar a solução - contratar um contador de histórias para o ajudar a adormecer. 
Mohamed entusiasmou-se com a ideia e logo mandou mensageiros por todo o lado à procura de algume que soubesse contar boas e compridas histórias.
Após quase três meses de intensas buscas, finalmente, o conselheiro trouxe à sua presença um velho de andrajoso que se dizia ter imensas memórias que decerto tanto agradariam ao califa e muito prazer lhe dariam em poder contribuir para o bem estar de tão ilustre pessoa.  
O velho aparecia no palácio ao cair da noite e logo se dirigia ao aposentos do califa com livros muito bem escritos e cheios de aventuras tão interessantes que lia, madrugada dentro, com o Mohamed sempre muito atento até que amanhecia e ficava mais uma noite sem 'pregar olho'.
Quase a ser despedido por não saber cumprir o acordado e mais do que isso, ameaçado pelo califa de que lhe mandaria cortar a língua pois era inútil uma vez que as suas palavras não lhe traziam o sono, o contador em aflição resolveu inventar que um mercador rico comprara duas mil ovelhas e precisava levá-las para o seu pasto mas tinha de atravessar um rio muito largo e só tinha um pequeno barco que comportava apenas quatro animais de cada vez.
O Califa precisaria, assim, de ouvir o contador de histórias contar, uma a uma, as quinhentas viagens que o mercador tinha de fazer para passar as ovelhas de uma margem para a outra e como as travessias eram contadas com tanto pormenor que a monotonia e o tédio se apoderavam dele de tal maneira que acabava por adormecer profundamente, sem nunca conhecer o fim da narrativa.
Uma noite, em que já estava preparado para ouvir mais uma travessia, movido pela curiosidade, o Califa exigiu do contador que lhe contasse o fim daquela história pois não tinha já paciência para ouvir mais travessias e podia o efeito ser contrário e não adormecer daquela vez.
O velho recusou prontamente e mesmo perante a insistência do Califa manteve a recusa e tanto que, nessa mesma noite, o Califa o mandou prender por desobediência. 
O califa desesperado por não dormir, foi ao calabouço onde estava preso o contador de histórias e mandou que torturassem o desgraçado dizendo que assim ficava pago o contrato pois também o velho com a sua recusa o deixava numa tortura sem fim. 
Então, o velho com voz débil e amargurada disse: 
- Não vale a pena mandares que me torturem, senhor, pois também eu não sei o fim da história já que também eu adormeço à sua cabeceira, todas as noites,muito antes de terminar a última viagem do barco com os últimos quatro carneiros.




16 de maio de 2017

O MEU PAI NUNCA ME OUVIU...

"O meu pai nunca me ouviu..
Disse-me o Vítor num dia em que, sentados à mesa do café, discorríamos sobre a nossa adolescência quando, depois de quase vinte anos sem nos vermos e nos reencontrámos. 
"Não me recordo de, alguma, vez o meu pai e eu termos tido uma conversa a propósito, fosse do que fosse."

Por detrás das lentes graduadas, foi possível aperceber-me de uma sombra de desapontamento e tristeza no seu olhar pisco. Aproveitei para bebericar o café já que não consegui inventar nada de muito prestável para preencher o intervalo.
Mas ele logo prosseguiu:

"Lembro-me muito bem das viagens que fiz com ele, quando ia visitar as empresas e as herdades e todos o tratavam por senhor engenheiro e para mim, apenas tinham um sorriso comedido e um acenar de cabeça. Acho que já pensavam que, um dia mais tarde, eu também me tornaria engenheiro ou qualquer outra coisa e ficaria assim, sério, reservado e áspero como ele, à frente de tudo aquilo."
Um segundo apenas. Para respirar a frustração acumulada.
"Nunca me ouviu sobre nada. Determinava na sua cabeça e deixava escrito um recado, na secretária do escritório que montara em casa e onde além dele só entrava minha mãe e a Amélia, aquela criada já velha que tu ainda conheceste."
Assenti. Conheci muito bem a Amélia. Aparecia sempre, à hora certa do recreio, na escola, para levar o lanche num cestinho de verga. Pão com compota e manteiga, bolachas e um termo com leite e chocolate quente. 
Teve um sorriso. Eu tinha estado a pensar em voz alta.

"Fomos ficando, cada vez mais longe um do outro. Depois veio a terrível doença. Crises em cima de crises. Ficou pele e osso com os tratamentos de químio e radio. Numa das vezes em que foi à urgência do hospital ficou internado",
Uma pausa para limpar as lentes embaciadas pela emoção.
"Uma tarde, antes da visita, o médico pediu-me para ir ao gabinete e disse-me que provavelmente o meu pai já não passaria dessa noite. E eu, quando cheguei ao quarto, fui segurar-me à cama dele, como se isso evitasse que ele fosse embora para sempre. Pressentiu-me chegar. Virou para mim a face magra, os olhos secos e encovados ainda pareceram sorrir, antecipando um pedido trémulo: 
(Fala comigo...) 
com as lágrimas a escorrerem-me pela voz, sem saber o que dizer quis-me lembrar das viagens que fazíamos e comecei: 
Lembras-te daquela vez que fomos...
foi quando senti que a mão dele que viera trémula ao longo do lençol, agarrar-se à minha na guarda da cama, ficou ali sem fria e inerte. 
O meu pai acabara de morrer sem que eu pudesse dizer que me tenha ouvido, uma única vez na vida...


30 de abril de 2017

FRAGMENTOS

I
Uma vontade de não querer ter pensamento.
Uma angústia de todas as células do corpo num sentimento súbito de clausura 
numa cela tão inacessível que fugir se torna utopia pois a cela é tudo.

II
A memória, afinal, é uma ilusão.
Porque nunca podemos fazer com que ela nos repita o que nunca fizemos. E, no entanto, as saudades mais cruéis são as que povoam a memória com as coisas que não fizemos ou não vivemos.

III
Não existe um caminho de vida só nosso.
O caminho que escolhemos é constantemente percorrido por outros que escolheram o mesmo caminho.
Ou será que fomos nós que escolhemos o deles?

IV
A vida vai-se em prateleiras numa despensa de factos e de sensações que vamos pondo de baixo para cima e da porta para a parede do fundo.
É por isso que à medida que, quando a despensa vai ficando cheia, chegamos mais facilmente ao mais antigo do que ao que aconteceu ontem.

V
A vida é um baile de máscaras onde para sobreviver é, muitas vezes, necessário por a máscara apropriada.
Porque se formos mascarados de nós mesmos correremos o risco de não acertar com a música.
VI
Não se pode deixar pensar o coração

VII
Na realidade não fazemos anos. Vamos desfazendo-os. Cada dia a mais nas nossas vidas é um dia a menos que vivemos. Não sabendo o tempo que temos de vida, vamos continuando a somar os dias e não a subtraí-los, apesar de estarmos sempre a gastá-los.

VIII
A ideia que temos do passado é de um tempo que não está ao nosso alcance modificar. No entanto, como sempre o podemos revisitar nas nossas memórias, é relendo-o naquilo que não devia ter sido, estamos a modificá-lo, no presente, para não voltarmos a repetir os mesmos erros

IX
O que é preciso é nunca nos rendermos. Quando arranjarmos motivos para não agir, quando não falamos com medo do que dissermos, quando preferirmos estar mais quietos que desassossegados, então estamos lixados!

X
Viver é sonhar acordado porque se a vida não tiver sonho já morremos em vida. Morremos! Não adormecemos. Porque até a dormir, sonhamos...




27 de abril de 2017

DE VEZ EM QUANDO

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De vez em quando deixe-se encantar!
Deixe-se ir, no silêncio de uma bolha de sabão 
levada na brisa suave, de um fim de tarde
equilíbrio espacial, lento, talvez inseguro,
mas sempre com um arco-íris interior.
De vez em quando deixe-se levar!
Não é proibido, sabe? Só deixar ir o coração,
nesse voo de sentimentos e de liberdade
como se à nossa volta tudo fosse puro,
e não houvesse guerra nem dor.
De vez em quando permita-se sonhar!
Um luxo ao alcance de todos, uma inspiração
que devemos manter seja qual for a idade
porque é na sombra do sonho, imaturo,
que está o alimento do prazer e do amor.












De vez em quando permita-se viver!

17 de fevereiro de 2017

ÀS VEZES HÁ LUZES NO CAIS


Da janela do meu mundo, ai de mim, que desespero
sem companhia de estrelas, de lua prateada
sem formas de marfim, sem aquele brilho infinito
fico sem sonho para ver, sem luz para sonhar.
Tacteio com os olhos doridos, num esforço de cego,
um esboço de brilho, uma forma de sonho, iluminado..
À procura de um porto seguro, sonho mais, mais e mais.
E, às vezes, há luzes no cais!

UM SOL SEMPRE À JANELA

NÃO IMPORTA QUAL SEJA A ESTAÇÃO
não importa como acorda o coração
um novo dia é sempre dia de agradecer
Por isso:
se decreta que a partir de hoje,
só vale a vida, em todos os acordares,
mesmo nos mais cansados,
mesmo nos mais penosos,
só vale o sorriso, em todos os olhares,
mesmo nos mais fatigados
mesmo nos mais idosos
só vale a leveza, em todos os andares,
mesmo nos mais pesados,
mesmo nos mais vistosos. .
só vale a ternura, em todos os corações
só vale a paz, em todas as orações.
 só haverá girassóis em todas as janelas,
que devem ficar abertas, de par em par,
para que o homem jamais esqueça
que o Sol é vida e o que importa é amar!

15 de fevereiro de 2017

NOITE DE NAMORADOS

NÃO SEI ONDE ESTAMOS o que pouco importa
porque a noite está a chegar com promessas de amor. 
Há nuvens de luz a nascer por detrás do infinito,
um brilho de estrela que mergulha no horizonte
claridade de sombras que deslizam pelo monte
e uma estrada líquida que reflecte o céu.
A ilha abriga-nos sentimentos; solta-nos intensidades
no crepitar das chamas as promessas de amor eterno.
Olhamos o silêncio das cores, à nossa volta.
Para o meu coração, basta o teu peito.
Para a tua liberdade, as minhas asas.


14 de fevereiro de 2017

DESERTO SEM SEDE


Marcado na face por sulcos de água de sal
não pode ser deserto, antes praia ou pantanal
este imenso areal coberto por um céu quase divinal
até onde o olhar se esforça, impreciso,
até onde tecto e chão se tocam, num traço indeciso.

13 de fevereiro de 2017

SONHO QUADRICULADO

Hoje foi a claridade de um Sol desmaiado por entre uma clarabóia de nuvens, que me acordou. 
E, acordei sem conseguir recordar aquele que (julgo eu) terá sido o último sonho 
que o meu subconsciente quis sobrepor ao real do consciente 
quando este, sem vontade de reter labirintos, deixou a informação perdida. 
Talvez uma noite destas, mascarado de novo sonho, regresse para ficar.
Labirinto nunca será algo imaginado para a gente se perder 
mas um desafio onde procuramos encontrar a saída de uma dificuldade 
ou um despertar da vontade e da perspicácia para essa superação.
Tantos sonhos estranhos que temos não são mais do que os casos e acasos da nossa vida 
que quisemos fechar no lugar mais profundo do labirinto do nosso cérebro 
mas, que uma certa noite, reaparecem disfarçados de absurdo 
que nem vemos a saída tão matematicamente certa 
como uma conta que nem precisa de prova dos nove ao lado. 
São sonhos quadriculados...

10 de fevereiro de 2017

DEFINITIVO


HÁ PEDAÇOS DE ALGODÃO 
soprados por um vento leve 
num tecto de azul imenso e intenso, 
cobrindo dunas alinhadas num sem fim,
tão definitivo de tão belo,
Tudo à nossa volta será um espanto 
se não nos julgarmos donos do que não temos.


COSTA DOS ESQUELETOS

ESTOU NO CIMO DO SONHO, na beira da escarpa, 
imensa duna de amarelada areia pedregosa 
que parece pronta a esfarelar-se sobre um mar 
que dança lá muito em baixo, murmúrio de águas temerosas 
sob um tecto plúmbio, num prenúncio de tempestade. 
Levanto a cabeça quando oiço um bater de asas
de uma formação de gaivotas no infinito à procura de abrigo.
E sinto-me, por momentos, menos só!
Até que as aves passem, num voo libertário que me transcende.

25 de janeiro de 2017

JÁ PASSA DO MEIO DIA...

Chegou à porta do quarto e bateu com os nós dos dedos na porta quase totalmente fechada. Nada! Voltou a bater, agora acompanhando o toque com o nome dele a saltar receoso dos seus lábios.
"São horas, filho! Olha que já passa do meio dia!"
Do quarto ainda envolto numa penumbra que o dia tinha atacado e ajudado a clarear ligeiramente, saiu um resmungo, seria mais um grunhido de alguém que não está disposto a ser importunado.
Não obstante, ela insistiu.
"São horas, filho! Olha que já passa do meio dia!"
Encostou o ouvido à porta e julgou identificar o ruído dos lençóis quando alguém se revolve e se revolta porque acha que o dia tem ainda muito tempo para ser dia.
"Ó mãe, caramba! Eu não te pedi para me acordares, pois não?"
A mãe hesitou a ensaiar uma última tentativa mas considerou que talvez fosse melhor não insistir, até porque de dentro do quarto ouviu a voz a engrossar.
"Deixem-me em paz! É sempre a mesma coisa. Eu quando quiser eu levanto-me.....percebes ou não?"
Ela deu meia volta e enquanto seguia pelo corredor na direcção da cozinha onde o almoço fumegava, a castigar-se intimamente por não ter tido a força suficiente e as palavras pareciam sair da sua cabeça, num murmúrio.
"São horas, filho! Olha que já passa do meio dia"
A geração 'NEM NEM formada por centenas de jovens que nem estudam nem trabalham e que, um dia, ainda ouviremos culpar pais e avós por não os terem tirado da cama, porque já passava do meio dia,.....

24 de janeiro de 2017

ESPERA MAIS UM POUCO....


ACORDAVA SEMPRE MUITO CEDO Demasiado cedo.
Era normal a casa ainda dormir num silêncio profundo
apesar dos raios de Sol empurrarem as portadas da janela.
Ficava, então muito quieta, naquela apatia de enganar o dia
sem vontade de sair do lençol morno enrolado ao corpo
sem vontade de tirar a cabeça da almofada dos sonhos.

Todas as noites, antes de adormecer, ia amontoando dias
um passado feito mais de incertezas e de muito poucas alegrias
e então questionava-se sobre a moral e a justiça da vida. 
Enquanto que para uns, a felicidade parecia estar à porta
para outros, para ela também, um caminho tortuoso e difícil, 
sem abrigos nem descansos desgastava-lhe a vontade de ser.

Talvez, por isso, o sono fosse encurtado num sobressalto
muitas vezes assaltado por um pesadelo cruel.
Certamente, por isso, ela desejava esperar mais um pouco
muito quieta, escutando o silêncio sombrio da casa
esquivando-se aos raios de Sol que anunciavam o dia,
sem vontade de sair do lençol morno enrolado ao corpo
sem vontade de tirar a cabeça da almofada dos sonhos.

E ficava acordada! Fechava os olhos e ficava acordada, 
fingindo dormir, só para enganar o seu inconsciente,
para poder ser ela a comandar um sonho 
onde coubesse um futuro com a felicidade sempre à porta!


23 de janeiro de 2017

O MENINO QUE NASCEU CEGO

O seu mundo particular tinha-o construído, momento a momento,
sempre que os outros órgãos sãos lhe permitiam associar 
todas as sensações da sua retina branca.
Uma voz conhecida, outra desconhecida, a música que gostava de ouvir,
o canário que cantava tanto na gaiola da sala, 
um simples ruído que se habituara a sentir,
sons tão diferentes que relacionava com objecto ou acção. 
Quando os seus dedos tacteavam corpos e rostos, 
num tremular de ansiosa adivinhação 
ou abraçava objectos para lhes descobrir as formas e as texturas.
Mas também tudo o que lhe descreviam e 
armazenava num imaginário de cores e formas.
A praia de areia dourada sob o intensamente amarelo do Sol, 
o céu azul a reflectir ondas brancas de espuma, nuvens revoltas, 
as árvores de copas verdes e a relva macia a atapetar o chão
e, nas noites estreladas num mar de cintilações 
iluminadas pelo néon da Lua com os desenhos das sombras 
Todas as coisas que se esforçava por captar 
num esforço que os seus olhos nunca poderiam ser. 

Num fim de tarde, em que dava o seu habitual passeio com o pai, 
pela muralha que ladeava o porto de pesca
e ia descrevendo tudo o que não podia ver, 
o pai nunca deixava de ficar fascinado 
ao confrontar o filho com o seu mundo interior, imaginado. 
Foi então que, a dada altura, ao sentir a amena brisa 
que àquela hora sempre se levantava, 
ele estacou, de repente e perguntou:
- Pai, diz-me. Que cor tem este vento?

20 de janeiro de 2017

O MENINO QUE SONHAVA A CORES

QUANDO SE DEITAVA e a mãe lhe vinha aconchegar a roupa
fazer aquele gesto, ao longo dele, como se lhe moldasse o corpo
deixar-lhe o suave toque dos lábios na sua testa
num doce afago, passar-lhe os dedos pelos cabelos,
num sussurro delicado dizer-lhe - dorme bem, meu querido,
o menino suspirava um longo sorriso e, mal adormecia,
sonhava a cores.
E, eram sempre tão lindos os sonhos que ele via 
por um caleidoscópio de cores suaves a cheirarem a primavera
E desejava tanto que a sua mãe entrasse também para o sonho
lhe aconchegasse a roupa e fizesse tudo o que costumava fazer 
para ele poder continuar a sonhar...sempre....sempre....

18 de janeiro de 2017

HÁ HORAS DE SORTE...

HÁ HORAS DE SORTE...
JOSÉ AÇO, EMPREGADO DE MESA num café da baixa portuense foi o primeiro apostador do totobola a ganhar mais de dois milhões de escudos (2.000 contos ou 10.000 euros) graças ao sensacional palpite da filha com nove anos de idade. Foi há 52 anos ( a 18 de Janeiro de 1965). A notícia veio no Diário Popular e apesar de em 1965 dois mil contos ser quantia milionário, reza a notícia que o senhor continuou a atender às mesas, todos os dias, os clientes do café onde estava empregado há mais de dez anos.
Há horas de sorte!


ADRIANO, MEU AVÔ MATERNO que foi responsável pela loja de Valentim de Carvalho na rua Nova do Almada, era também ( dizia a minha avó ) afinador de pianos e entendido em transacções de instrumentos musicais, ainda eu não era nascido.
Uma manhã de primavera, a velhota de lenço minhoto na cabeça e aspecto modesto abordou o meu avô, quando este abria a loja. vendia lotaria. Na mão direita uma tosca bengala ajudava a perna frágil e cansada enquanto na outra mão exibia harmónios de uns bilhetes da lotaria.

"O senhor aproveite este Sol e ilumine a sua vida. tem aqui este terminado em 3 que é a conta que Deus fez...
O meu avô achou graça ao jeito dela e acabou por lhe comprar uma cautela do tal número que terminava em 3. Na sexta feira andou á roda mas o meu avô nunca mais se lembrou da cautela mas na segunda feira seguinte, ao abrir da loja, o meu avô viu a velhota 'cauteleira' subir vagarosa e esforçadamente o início da rua. Esperou à porta da loja e quando ela chegou:
"Bom dia minha senhora! Lembra-se de mim?"
"Então não me lembro! Eu não lhe dizia que ia ter um raiozinho de Sol na sua vida?"
"Ai sim? Então diga lá!"
"Então o senhor não viu? Teve prémio. 10 vezes o que pagou"
"Oh, oh, oh, não me diga. Ainda aqui tenho no bolso a cautela Como é que vamos fazer isto?"
"Se quiser o prémio vai ao Rossio que eu não ando com tanto dinheiro para destrocar mas se quiser.... compra-me o bilhete e fica tudo pago"

O meu avô hesitou, enquanto a velhota se encostava à parede com os olhos brilhantes a assomarem por baixo do bico do lenço.
"Está bem! Ficamos assim... a partir de hoje jogo sempre com esse número todas as semanas, pode ser."
"Se pode! Uma boa escolha, cavalheiro e muito agradecida.."
"Espero que tenha sorte...".
"Dito e feito, meu caro senhor.... aqui o tem!"
"Como se chama, a senhora. Eu chamo-me Adriano Rodrigues e estou sempre aqui na loja. Se alguma vez tiver de me ausentar deixo alguém com o dinheiro e a quem pode confiar as cautelas".
"Sou a Etelvina, meu bom senhor e que a sorte vire os olhos para o seu lado e ilumine a sua vida".

Passou um ano. Passaram dois anos. Etelvina passava sempre pela loja, segundas de manhã, deixava o bilhete com o número da sorte e o meu avô lá ia, de quando em vez, tendo uns raiozinhos de Sol para dividir em prendas com a minha avó, a minha mãe e os meus tios. Nunca ganhou nada demais. Mas, como ele dizia, lá ia dando para uma passeata, num qualquer domingo em que iam de charrete almoçar, fora de portas, ali para os lados do Campo Grande e passar a tarde a respirar o ar puro do campo.
O inverno tinha começado há uma semana e tinha vindo muito frio e molhado quando numa manhã de segunda feira, já passava das onze, um rapaz de fato gasto e acanhado e molhado da cabeça aos pés entrou na loja e dirigiu-se ao meu avô:
"Bom dia. É o senhor Adriano?"
"Sim sou eu."
"Eu sou o Álvaro, sobrinho da Etelvina da lotaria..."
"AH! Estava á espera da sua tia, mas não apareceu até agora e.."
"Pois. A coitada está com a pneumonia. Passou a noite muito mal e pediu-me para lhe trazer as cautelas..."
"Coitada. Então deixe lá ver que eu lhe pago,..."

O rapaz tirou de um saco de pano grosso, uma série de cautelas, meio molhadas e mostrou-as, mas o bilhete reservado, estava já quase todo vendido e só restavam quatro cautelas. 
O meu avô desencantado.

"Então a sua tia não lhe disse nada?"
"É que, pois, não me lembro se....talvez..."
"Bem, bem! Já vi que temos confusão. Mas, pronto. O que não te remédio.....olhe fico com o que resta".
"Obrigado, senhor e desculpe. Não me lembrei de separar..."
"Pronto, pronto. Não seja por isso. Vá lá à sua vida. E as melhoras da sua tia coitada. O pior mal é o dela. Vá lá!"

Na sexta feira andou à roda como sempre. O número do bilhete que o meu avô costumava comprar inteiro, teve o primeiro prémio. A sorte grande. O meu avô teria ficado milionário. Assim teve os raios de Sol que o sobrinho não tivera tempo de vender.