12 de novembro de 2016

UM VERÃO À SÃO MARTINHO 2


A CASA DOS MEUS AVÓS era um daquelas andares num prédio dos anos vinte com o corredor a começar na sala de entrada e a acabar, uns quilómetros depois, na cozinha. Pelo caminho quatro portas para outros tantos quartos e no lado oposto a porta dava para uma despensa mas a tia Leonor, irmã do meu avô, muito crente e devota de São Martinho, decidira dar outro fim.
O QUARTO DAS ORAÇÕES tinha uma espécie de armário em pau preto com duas portas abertas a mostrarem várias gavetas pequenas até meio e em cima numa espécie de altar, imagens de e pequenos quadros de santas e santos mártires e ao centro uma imagem grande de um Cristo de túnica purpúrea arrastando uma cruz, cabeça ensanguentada pelos espinhos da coroa e uma máscara de esforço. Dois pequenos bancos de almofadas de veludo encarnado serviam para a tia Leonor e por vezes a minha avó se ajoelharem em oração. 
Mas era a pintura na parede do lado esquerdo, por cima de uma mesa meia lua, com dois castiçais de duas velas cada e uma Bíblia com capa de carneira, que me fascinava. 
Um soldado romano que montava um robusto cavalo branco, cortava com a espada, a sua capa vermelha enquanto um mendigo seminu aguardava na berma do caminho.
O autor pintara o céu de um azul acinzentado sem anjos nem trombetas com uma paisagem desoladora de árvores esqueléticas e terra pedregosa.

A MINHA AVÓ contara-me que o cavaleiro piedosamente, vendo o mendigo a morrer de frio repartiu a sua capa com ele e Deus abriu então o céu e o Sol voltou a aparecer e o dia ficou quente e luminoso. E o cavaleiro que se chamava Martinho ficou santo e por isso diz a tradição popular que existe um verão em Novembro que é o de São Martinho. Satisfeita a curiosidade, já a minha avó se preparava para se ir embora quando eu lhe puxei a saia e lhe perguntei: 
"Ó avó, então se Deus mandou vir o Sol só depois de S. Martinho rasgar a capa porque é que não fez isso antes? Não se estragava a capa e o pobre não apanhava frio...."