25 de maio de 2015

ARGENTINA DOS OLHOS VERDES

Argentina chegou de Rápido a Santa Apolónia, no fim de uma tarde de Março.
Apanhou o comboio em Campanhã, depois de três horas de viagem
no carro de aluguer do senhor Luís, ainda o Sol espreguiçava um lento acordar
Em quinze anos de vida, esta era a segunda vez que saía de Ponte de Lima.
Aos doze fora com a mãe, ver um tio que estava doente, perto de Braga.
Dona Aurélia, tia do Raul, mandara mais do que o necessário para a viagem.
Residia num segundo andar de sete assoalhadas, fachada em amarelo
com torcidos e tremidos de gesso a encimar janelas de portadas altas e largas
e amplas varandas elípticas com as guardas trabalhadas em ferro forjado,
uma arquitectura eclética vagamente arte nova semeada pelas avenidas novas, 
a zona nobre da capital iniciada no começo da década de trinta.
Argentina despedira-se, abraçada à mãe e aos cinco irmãos, todos mais novos,
como se fosse um adeus definitivo e o seu destino fosse o fim do mundo..
O pai nada disse mas ela julgou ver uma lágrima rebelde no seu olhar cansado.   
Argentina chegou com uma mala velha que se mantinha fechada com um cinto 
e um saco de lona atado com uma corda cheio de laranjas, maçãs e um queijo.
Tudo para dona Aurélia e para o menino Raul. o sobrinho que chamava carinhosamente ‘Titi’.
A miúda, dizia o Raul apesar de ser mais nova do que ele apenas três anos,
teve imensa sorte em vir para Lisboa fazer companhia à 'Titi'.
Aprenderia boas maneiras, arranjava um namorico com um tropa, casava,
ia para porteira num dos prédios da ‘titi’, tinham dois ou três filhos. Pronto!
Porra. Nem a deixas escolher, dizia eu, divertido com um futuro tão definitivo.
Conheci a Argentina numa noite em que fui buscar o Raul para irmos ao cinema.
A descrição que ele me tinha feito da moça não fazia justiça à sua beleza.
Morena, cabelo preto ondulado, rosto redondo perfeito, um sorriso encantador
e um par de holofotes verdes a substituírem os olhos. Tinha uma silhueta esguia e os seios – impossível não reparar- a rebentarem os botões a uma blusa rosa.
Lá fomos ao cinema, depois do beijinho na testa da Titi e de ouvirmos desta,
“não venhas tarde, Raul” e “cuidado meninos… não andem por aí perdidos”.
O Raul, ‘Ó Titi, credo!’ e eu ‘Boa noite, dona Aurélia. Vamos ter cuidado, claro’.
Argentina foi acompanhar-nos à porta, sorriu para mim, antes de a fechar
e aquele sorriso andou comigo toda a noite. E, no escuro da sala, os olhos.
“Que olhos, pá. E o sorriso. Tu já tinhas reparado no sorriso? Lindo!”
Raul gargalhava trocista. ‘Deu-te cá uma pancada!”.
Mas a vida tem curvas que não estão assinaladas à partida. Três meses.
Foi quanto durou a estada de Argentina na capital. Um telefonema trágico.
A mãe falecera de um ataque e o pai sozinho com os cinco filhos.
Argentina despediu-se num choro convulsivo, agarrada à Titi e madrinha.
Um aceno triste e tímido para o Raul e lá foi, percurso inverso
do que fizera também triste, três meses antes.
Raul nunca disse nada mais nem quando eu o provocava.
Encolhia os ombros e limitava-se a um lacónico: ‘Arranja-se outra…”.
Depois, a vida deu voltas, curvas não sinalizadas.
Encontrei o João Abreu na Mexicana. Não o via há imenso tempo.
Foi ele que me viu. Abraço apertado. Grande festa. O que é que tens feito?
Aquelas coisas. Recordações. Por onde andam os gajos do grupo?
Este está assim. Aquele assado. O outro lá vai indo. Mais ou menos…
“Ah, não sabes? A tia do Raul morreu há dois anos, já. O Raul sei...
Esteve em Lourenço Marques; veio há uns três anos e tal.
Foi para Ponte de Lima, dar aulas. Português e História, acho que é isso.”
Faço um gesto de admiração enquanto comento o regresso à origem.
“Ah, é verdade! Fui ao casamento dele, no ano passado.”
“Ena! O Raul? Quem diria. Sempre o vi tão independente….e quem é?”
O João Abreu teve um sorriso como que a antecipar o meu espanto.
“Então espanta-te lá! Lembras-te da Argentina que veio fazer companhia…”
Não o deixei acabar. “Então não sei. A não me digas que…”
“Pois. Foi para lá e olha…casou-se com ela! Parece que vai ser pai”
Trocámos números de telefone. Abraço de despedida. Gostei de te ver.
E, enquanto descia a Guerra Junqueiro, pensava nas palavras do Raul.
Cheia de sorte, aprendia as boas maneiras, namoriscava com um tropa,
ia para porteira de um dos prédios da ‘Titi’, casava e tinham filhos.
Ó Raul, meu amigo, a vida tem tantas curvas que não estão assinaladas.