24 de outubro de 2014

A PRETO E BRANCO

A noite traz sombras antigas, a preto e branco,
como nos filmes da minha infância.
Nesse tempo, eu não gostava da noite.
Mais do que as sombras, era o preto de que era feito o escuro
que me causava aquele nó na garganta; aquela ânsia.
Nem uma pontinha de branco para me atenuar o susto.

Por isso também não gostava daquela amiga da minha avó
que se vestia sempre de preto, da cabeça aos pés
que lhe dava aquele ar de noite infeliz
Longo casaco astracan preto, um palmo de canelas pretas 
que espreitavam entre o bordo do casaco e os botins de meio salto.
E, depois, aquelas luvas pretas que me deixavam petrificado 
quando me afagavam a cabeça.
Era então que descia ao nível da minha cara, 
o chapelinho preto com meio véu preto,
aqueles dois olhinhos envidraçados, piscos e míopes,
a face levemente rosada pelo rouge de odor enjoativo,
e sentia os lábios esborratados de baton discreto
num beijo trémulo que me deixava marca na testa.

Nunca tive um enfarte.
Talvez fosse demasiado criança
para falhas circulatórias dessas ou outras complicações.
Semicerrava os olhos, via apenas aquele vulto escuro
e ouvia uma vozinha trémula, dizer para a minha avó 
como se falasse no escuro de noite
e não quisesse acordar as sombras. 
"Tem um netinho que é um amor...uma criança feliz.".
A minha avó sorria, e eu num profundo terror
de que ela se lembrasse de pedir.
"Dá um beijinho à dona Beatriz".