31 de agosto de 2015

ASSIM COMO?

Foi a minha madrinha que tomou conta de mim. Tinha eu seis anos.
Os meus pais morreram num grande choque de comboios, na linha da beira alta.
Não foram os únicos. Quanto aos outros… alguém terá chorado por eles.
Iam para Paris. Era a primeira viagem que faziam. No dia seguinte ao Domingo de Páscoa.
Foi o senhor Ulisses, que por lá andava com um táxi, que lhes tinha arranjado trabalho.
Em Versalhes. Num palacete de uns ricaços nobres. Duques ou coisa assim.
A minha mãe ia para ajudar nas limpezas de casa. O meu pai, jardineiro e guarda.
A minha madrinha e eu fomos despedir-nos na estação de Coimbra.
Agarrei-me muito a minha mãe. Um aperto de lágrimas e soluços.
Ela também chorava mas viria buscar-me nas férias grandes. Em Agosto.
O meu pai sentado num baú de lenço na mão, limpava as lentes embaciadas.
Até parecia que nunca mais nos tornaríamos a ver.
O comboio apitou e eles na plataforma da carruagem começaram a afastar-se devagar.
Depois, mais depressa, mais depressa até que foram engolidos pelas árvores e pela colina.
E foi a última vez que os vi… Não me deixaram ir ao cemitério. Nem ao funeral.
A aldeia veio visitar-nos a casa. As mulheres abraçavam-se muito a minha madrinha.
Ela agradecia o que lhe diziam, muito baixo, como se fosse um segredo.
Os homens, de chapéu na mão, faziam-lhe uma vénia e a mim, uma festa na cabeça.
Elas acocoravam-se à minha frente, aos beijos, “Coitadinha… coitadinha...”, e seguiam.

Fez hoje trinta anos que os meus pais morreram. A minha madrinha morreu há cinco.
E, foi hoje, precisamente hoje. Também.
Um tumor na cabeça que rebentou. Estava já cega e quase surda.
Fui deixar-lhes flores nas campas e umas velas. Mas não me demorei.
Já não me demoro porque estou sempre com eles. Lembro-me sempre deles.
A minha madrinha passou toda a vida a falar-me deles.
Um dia, confessou-me que ela amara o meu pai. Mas sufocou esse amor, pela minha mãe.
Por isso quando o meu pai morreu, ela ficou viúva do amor que nunca conseguiu ter.
E, assim, foi ela a minha mãe viva e viúva do amor pelo meu pai.
Deixou-me esta casa e as terras que vão da escadaria até ao rio, lá em baixo, no grande vale.
É no rio que lavo as sombras da alma e afogo as mágoas do meu corpo.

Quando me perguntaste, porque estou sempre assim e eu te respondi, assim como?
Tu sorriste. Mas ficaste calado a olhar-me. Como quem reconhece a pergunta inútil.
Sabes que sorri também? Mas tu não viste o sorriso. Ninguém vê. Nem tu que te amo.
Sou mulher de silêncios que não aprecia manifestações efusivas nem lágrimas.
Aprendi a reprimir os desejos. Mesmo os mais vulgares. Até os mais insignificantes.
A disfarçar as alegrias. Até as mais pequenas. Mesmo que sejam só minhas.
A vida secou-me o peito e as lágrimas dentro dele. Vivo comigo mesma e é quanto me basta.
Não pretendo dividir tristezas com ninguém; nem quero que alguém divida as suas, comigo.
Sonho lembranças e sombras ou talvez, apenas, lembranças sombrias.
Quero continuar a lavar as minhas sombras e a afogar as minhas mágoas.
Porque o rio não as leva a ninguém.
Quero continuar a reprimir os meus desejos e a esconder as alegrias.
Porque se ninguém souber o que quero ou o que me apraz, ninguém abrirá os meus silêncios.
Egoísta é-se quando não se quer repartir algo de bom.
Serei egoísta por não querer que ninguém fique triste, comigo?
Talvez não saibas uma parte de tudo, nem compreendas grande parte de tudo.
Mas pelo menos sabes porque sou assim… só não sabes (nunca saberás) que te amo.
Por isso, nos meus silêncios continuará, também, o meu amor por ti.
E, quando perguntares “porque estás assim?” inútil, o meu sorriso escondido “assim como?”
Obrigada por teres vindo!