11 de agosto de 2015

ESCADAS, ESCADINHAS E ESCADOTES


Quando chego ao centro de saúde, a sala de espera está quase deserta.
A espécie de roldana vermelha, cravada na parede, segura uma língua pequenina e azul.
Número 005. A funcionária tem uma cara redonda e bata branca debruada a verde. 
Pede-me o cartão, com o telefone entalado no ombro esquerdo e na bochecha. 
Tem um ar ensonado e contrariado. Digo-lhe 'bom dia' e ela atira-me.
"A minha filha não me deixou dormir nada esta noite...dentes!"
Tenho vontade de lhe dizer qualquer coisa mas fico por um 'pois...' conformado. 
Tecla rapidamente e enquanto espera que o ecrã abra, resmunga. 
Não sei se é comigo se é com o telefone, por isso não respondo. 
“É para a enfermeira Cacilda, não é?” 
Repete quase a gritar, ao mesmo tempo que fala com o telefone. 
Afinal é comigo. Concordo com um sinal de cabeça e lá sai o recibo impresso. 
“Aguarda na sala…” 
Encolhido no ângulo da parede do fundo, o homem quase mete o jornal pelos óculos.
Ao lado, um rotundo par de nádegas estrangula a cadeira de um plástico castanho gasto.
A mulher é enorme e gesticula frases entrecortadas por uma respiração ofegante.
Ele parece não querer acabar as palavras cruzadas para se sentir mais longe dela.
Tenta ficar invisível, embrulhado no silêncio opaco do jornal. Marido e mulher. Avalio.
Junto à mesa baixa com revistas do século passado e prospetos amarrotados,
a rapariga de rabo de cavalo amarelo masca, desenfreadamente, uma pastilha elástica.
De vez em quando, aparece-lhe entre os lábios envernizados a vermelho escaldante,
um balãozinho branco que rebenta num barulhinho discreto de visão desagradável.
Pernas bem lançadas e coxas fortes mal cabem nos calções. O top preto a tapar pouco.
Na coxa esquerda a tatuagem ilegível é um nome... ou será assinatura?
Atravessa-me com um olhar inexpressivo e com o balãozinho a formar-se na boca.
Escolho uma cadeira do outro lado, passo pela mesa e apanho uma revista qualquer.
Vou fazer como o homezinho. Escondo-me atrás das palavras cruzadas.
Imponho a mim mesmo que vou olhar, uma última vez, as coxas da rapariga.
Continuo sem perceber o nome gravado na coxa esquerda.
No meu cérebro a desculpa de que o esforço de decifração vai demorar o olhar.
O quadro luminoso tem agora o 003 vermelho intermitente. Emite um besouro.
A mulher agita-se num grasnar ofegante de nádegas e de refegos 
e abana o jornal com tal violência que quase rasga o homenzinho,
“D. Natalina, já pode entrar…então essas dores?”
A mulher encosta-se ao balcão que parece vergar com o peso
“Ai menina são demais. Nem me deixam dormir.”.
E abana o braço roliço atrás das costas num esforço de peles caídas,
quando num sofrido quarto de volta tenta mostrar, à menina, o sítio da dor.
Esta finge atenção, mas apenas faz surgir um olho por detrás do monitor.
“Pois é D. Natalina…uma maçada. E o senhor Hipólito?! Está muito bem…”
Num arrastar de naufrago, alcança a nádega da mulher como borda de piscina.
Sorri timidamente para o balcão com o jornal incapaz de o encobrir por mais tempo.
“A enfermeira está fartinha de dizer à Lina que ela precisa é de se mexer…
O senhor Hipólito tem uma vozinha trémula e conformada. A mulher quase lhe ralha.
“Veja bem que na última vez queixei-me que para além das dores, me cansava muito”
D. Natalina esmaga o marido que já não consegue disfarçar o desânimo.
“E sabe o que me disse ela? Que eu devia era subir escadas, degraus, eu lá sei…
E este, ainda por cima do lado dela. Que faz muito bem ao coração. Francamente….”
Hipólito a desaparecer no meio da revolta das nádegas, esbraceja um protesto.
“Pois é D. Natalina. É difícil. O gabinete do costume, D. Natalina e as melhoras”.
D. Natalina percebe que a funcionária não está interessada na conversa.
Com irritação, uma das nádegas, vinga-se no marido e esbofeteia Hipólito.
“Subir escadas? Francamente…nem escadinhas, nem escadotes.”.
E desaparecem pela porta de acesso ao corredor. Um último protesto de D. Natalina..
"...nós até moramos num rés-do-chão!"
A revista do século passado acaba por me apodrecer nas mãos e cai no mosaico.
A rapariga do rabo de cavalo amarelo está à minha frente. 
As pernas traçadas parecem ainda mais belas.
Por momentos imagino-as a subir um escadote…